A 'ordem estabelecida'
O velho Doutor Homem, meu pai, morreu sem ter compreendido o significado do Maio de 68. Naqueles dias, e apesar do ascendente inglês sobre a biografia dos Homem, a família ainda julgava que Paris era um dos focos de civilização, apesar da Torre Eiffel, um monumento deselegante e desconchavado. Aquela avalanche de barricadas erguidas contra a polícia e de rapazes despenteados que falavam para a televisão era uma surpresa na tranquilidade e bonomia burguesas da velha casa do Porto de então, onde uma multidão era sempre significado de peregrinação a Fátima ou de um jogo de hóquei em patins. Uma revolução transmitida em imagens de primeira página dos jornais (o meu pai lia o 'Daily Telegraph' servido no clube britânico) era uma novidade com substância a mais.
Só recentemente pude entender o sentido oculto dessa desordem; segundo a minha sobrinha Maria Luísa, tratava-se de 'uma revolta contra a ordem estabelecida'.
Ora, eu gostava da 'ordem estabelecida'. Fazer alguém compreender que existe alguma vantagem na existência de uma 'ordem estabelecida' e que há certas algumas almas que não encontram benefício visível na sua substituição por outra, é uma tarefa ciclópica. Fazer a minha sobrinha acreditar que a esta gente não foi ainda passada uma certidão de óbito, então, é quase impossível. Segundo compreendi, com a habitual dificuldade de uma múmia minhota habituada ao som roufenho das bandas de música que ainda tocam o 'Hino da Carta' em certos domingos primaveris, a juventude deve destruir a 'ordem estabelecida' enquanto pode. Na Grécia, por exemplo, durante esta semana (eu escrevo aos domingos de manhã e concluo – com a colaboração do silêncio matinal – no dia seguinte) a 'juventude' tratou de destruir a 'ordem estabelecida' com pedras e pequenas arruaças pelas ruas das principais cidades. Parece que é normal e desejável a 'juventude' divertir-se a beber cerveja e atirar pedras à 'ordem estabelecida'.
O entusiasmo que coloca nessa tarefa não se compara a nenhuma outra, a julgar pelos estragos causados: ruas sujas, carros incendiados, arremesso de pedras e de bombas artesanais – a 'revolta contra a ordem estabelecida' tem um preço exagerado, se pensarmos no que custa a manter limpa uma cidade mediterrânica com as suas temperaturas amenas. Pela televisão, acompanho os distúrbios com luneta adequada – não quero perder uma pedrada que seja, tentando compreender a extraordinária filosofia que a acompanha, enquanto quebra um vidro inocente.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Dezembro 2008
Só recentemente pude entender o sentido oculto dessa desordem; segundo a minha sobrinha Maria Luísa, tratava-se de 'uma revolta contra a ordem estabelecida'.
Ora, eu gostava da 'ordem estabelecida'. Fazer alguém compreender que existe alguma vantagem na existência de uma 'ordem estabelecida' e que há certas algumas almas que não encontram benefício visível na sua substituição por outra, é uma tarefa ciclópica. Fazer a minha sobrinha acreditar que a esta gente não foi ainda passada uma certidão de óbito, então, é quase impossível. Segundo compreendi, com a habitual dificuldade de uma múmia minhota habituada ao som roufenho das bandas de música que ainda tocam o 'Hino da Carta' em certos domingos primaveris, a juventude deve destruir a 'ordem estabelecida' enquanto pode. Na Grécia, por exemplo, durante esta semana (eu escrevo aos domingos de manhã e concluo – com a colaboração do silêncio matinal – no dia seguinte) a 'juventude' tratou de destruir a 'ordem estabelecida' com pedras e pequenas arruaças pelas ruas das principais cidades. Parece que é normal e desejável a 'juventude' divertir-se a beber cerveja e atirar pedras à 'ordem estabelecida'.
O entusiasmo que coloca nessa tarefa não se compara a nenhuma outra, a julgar pelos estragos causados: ruas sujas, carros incendiados, arremesso de pedras e de bombas artesanais – a 'revolta contra a ordem estabelecida' tem um preço exagerado, se pensarmos no que custa a manter limpa uma cidade mediterrânica com as suas temperaturas amenas. Pela televisão, acompanho os distúrbios com luneta adequada – não quero perder uma pedrada que seja, tentando compreender a extraordinária filosofia que a acompanha, enquanto quebra um vidro inocente.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Dezembro 2008
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