A segunda geada de Inverno
Os meus sobrinhos protestam contra o frio – entram na casa de Moledo, onde alguns se recolhem ao fim-de-semana (para benefício de Dona Elaine, a governanta deste eremitério, que finalmente tem para quem cozinhar), com um rasto de queixume contra os elementos em geral. É isso que eu menciono vagamente: que se trata "dos elementos". Contra eles podemos pouco – o vento, os relâmpagos, as chuvas, a geada, a queda de neve, os acidentes orográficos. Não os convenço. Para as novas gerações, se a televisão tem um som deficiente, carrega-se num botão; se o aquecimento em casa não basta, carrega-se num botão. Ora, a Natureza recusa-se terminantemente a aceitar este mecanismo e rege-se por princípios obtusos: há frio no Inverno e há calor no Verão.
Antigamente, não havia frutos no Inverno. Ontem, sábado (eu escrevo estas crónicas nas manhãs de domingo), a minha sobrinha Maria Luísa explicava pacientemente aos seus filhos que as cerejas que se vendem no supermercado vêm do Chile nesta altura do ano. Durante toda a minha vida, o Chile ficava para lá, não só das cordilheiras andinas, à beira do Pacífico, como para lá do Atlântico, como para lá da Ínsua de Moledo. E as cerejas vinham em Maio, luminosas e carnudas, pecaminosas, colhidas no próprio dia – as ginjas eram guardadas durante algum tempo mais. Portanto, se havia Inverno, não havia cerejas. Hoje em dia, se não há cerejas – mandam-se vir do Chile, e elas, obedientes e caras, atravessam as cordilheiras, o Atlântico e sobrevoam a Ínsua de Moledo antes de se sentarem à mesa.
Este fenómeno provoca distorções notáveis sobre a geografia e a meteorologia gerais. Explicar que o cruel Inverno, rigoroso ou plácido (como antes era o do meu Minho litoral), serve para nos abrigarmos e para vestirmos a roupa de lã, não basta para o temperamento do iluminismo contemporâneo. As estações do ano são coisas do "ancien régime"; trazem consigo o perfume das nossas tias, que preparavam compotas e secavam frutos na despensa; são um suplemento de energia apenas para os conservadores que não só não vêem necessidade de escapar ao rigor do Inverno como também não acham conveniente alterar o curso da Natureza. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que o Inverno favorecia muito a vaidade das classes médias, que podiam vestir-se de sobretudos e passar as suas noites à braseira. Hoje não há braseiras e temo que as classes médias tenham desaparecido nas Caraíbas, em férias pagas a prestações.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Dezembro 2008
Antigamente, não havia frutos no Inverno. Ontem, sábado (eu escrevo estas crónicas nas manhãs de domingo), a minha sobrinha Maria Luísa explicava pacientemente aos seus filhos que as cerejas que se vendem no supermercado vêm do Chile nesta altura do ano. Durante toda a minha vida, o Chile ficava para lá, não só das cordilheiras andinas, à beira do Pacífico, como para lá do Atlântico, como para lá da Ínsua de Moledo. E as cerejas vinham em Maio, luminosas e carnudas, pecaminosas, colhidas no próprio dia – as ginjas eram guardadas durante algum tempo mais. Portanto, se havia Inverno, não havia cerejas. Hoje em dia, se não há cerejas – mandam-se vir do Chile, e elas, obedientes e caras, atravessam as cordilheiras, o Atlântico e sobrevoam a Ínsua de Moledo antes de se sentarem à mesa.
Este fenómeno provoca distorções notáveis sobre a geografia e a meteorologia gerais. Explicar que o cruel Inverno, rigoroso ou plácido (como antes era o do meu Minho litoral), serve para nos abrigarmos e para vestirmos a roupa de lã, não basta para o temperamento do iluminismo contemporâneo. As estações do ano são coisas do "ancien régime"; trazem consigo o perfume das nossas tias, que preparavam compotas e secavam frutos na despensa; são um suplemento de energia apenas para os conservadores que não só não vêem necessidade de escapar ao rigor do Inverno como também não acham conveniente alterar o curso da Natureza. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que o Inverno favorecia muito a vaidade das classes médias, que podiam vestir-se de sobretudos e passar as suas noites à braseira. Hoje não há braseiras e temo que as classes médias tenham desaparecido nas Caraíbas, em férias pagas a prestações.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Dezembro 2008
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