Gozar a vida, encolher os ombros
Num mundo que começava a ficar dividido entre esquerdas e direitas, e no qual as esquerdas eram apoteóticas e as direitas estavam apoplécticas, o velho doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida. A esta distância, vejo que foi um homem sensato. Não foram cativantes, por assim dizer, os anos sessenta. Para quem não precisou de esperar trinta anos para decidir que o doutor Salazar servia para capelão mas não para acompanhar as vicissitudes do mundo, os anos sessenta não foram nem uma novidade nem uma contrariedade. Estava escrito que seriam assim e que teriam de existir períodos semelhantes. A pátria era um lugar sereno e familiar, cheio de gente modesta maltratada sem o saber.
O velho doutor Homem, meu pai, que conhecera a boémia em Paris e tratara de negócios em Londres – tudo antes da Guerra –, sabia que existia um mundo para lá de Vilar Formoso e, com toda a certeza, para além de Biarritz. Ele experimentara-o com a volúpia do andarilho embevecido e a moderação dos homens de bem. Ou seja, com a cautela dos portugueses. O seu luxo cosmopolita, que até aí fora pago pela bolsa paterna, passou, depois do casamento e do nascimento dos filhos, a ser uma espécie de sublevação e revolta contra o país onde, desgraçadamente, uma sardinha no pão era considerada um meridiano aceitável. Arrastando consigo uma família de crianças turbulentas que invadia hotéis balneares com a graciosidade de zés-pereiras, ele sempre acreditou que as viagens, o conhecimento do mundo, o domínio seguro de mapas de estradas e a prática de línguas estrangeiras eram portas que forneciam, necessariamente, ilustração capaz de nos afastar da pequenez da pátria. Não que ele a renegasse. Mas embirrava bastante com ela e com o doutor Salazar. E essa era uma sensação que tomava conta do velho doutor Homem, meu pai, ao reentrar em Portugal depois de percorrer centenas de quilómetros pelas miseráveis estradas espanholas.
Os anos sessenta não foram, pois, uma grande novidade. A educação liberal, o cinema e a generosidade dos costumes, longe de produzirem uma geração interessada em reformar a pátria e em civilizar a política, fabricaram grupos de rapazes de mau feitio e jovens senhoras desejosas de degradação e de liberdade. De modo que o doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Novembro 2008
O velho doutor Homem, meu pai, que conhecera a boémia em Paris e tratara de negócios em Londres – tudo antes da Guerra –, sabia que existia um mundo para lá de Vilar Formoso e, com toda a certeza, para além de Biarritz. Ele experimentara-o com a volúpia do andarilho embevecido e a moderação dos homens de bem. Ou seja, com a cautela dos portugueses. O seu luxo cosmopolita, que até aí fora pago pela bolsa paterna, passou, depois do casamento e do nascimento dos filhos, a ser uma espécie de sublevação e revolta contra o país onde, desgraçadamente, uma sardinha no pão era considerada um meridiano aceitável. Arrastando consigo uma família de crianças turbulentas que invadia hotéis balneares com a graciosidade de zés-pereiras, ele sempre acreditou que as viagens, o conhecimento do mundo, o domínio seguro de mapas de estradas e a prática de línguas estrangeiras eram portas que forneciam, necessariamente, ilustração capaz de nos afastar da pequenez da pátria. Não que ele a renegasse. Mas embirrava bastante com ela e com o doutor Salazar. E essa era uma sensação que tomava conta do velho doutor Homem, meu pai, ao reentrar em Portugal depois de percorrer centenas de quilómetros pelas miseráveis estradas espanholas.
Os anos sessenta não foram, pois, uma grande novidade. A educação liberal, o cinema e a generosidade dos costumes, longe de produzirem uma geração interessada em reformar a pátria e em civilizar a política, fabricaram grupos de rapazes de mau feitio e jovens senhoras desejosas de degradação e de liberdade. De modo que o doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Novembro 2008
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