O mundo perfeito
Vivi toda a minha vida com receio das pessoas que imaginam um mundo perfeito. De vez em quando ouço-as, profetizando: "Um dia o mundo será assim, perfeito." E um temor antigo, reverencial, amargo e cheio de pudor toma conta de mim nesse momento – talvez por hábito e também por conhecer um pouco da história dos homens e das suas ilusões. Neste assunto sigo à risca os preceitos da Tia Benedita, a matriarca da família, que sempre viu o mundo cheio de pecadores – fossem eles simples devassos e adeptos do amor-livre, quer se tratasse de carbonários, bolchevistas ou amigos do dr. Afonso Costa. O mundo é a soma das nossas imperfeições. Abençoada Tia Benedita, que quase não conheceu a dor da desilusão.
Ao ler no jornal que a Comissão Europeia decidiu autorizar a venda – em lojas – de "frutas e legumes não normalizados", imagino para onde vão os nossos impostos ou as moderadas economias de uma vida: para ajudar a Comissão Europeia a construir um mundo perfeito, um mundo onde feijões e espinafres, maçarocas de milho ou simples repolhos queimados pela geada saem dos campos com o peso certo, a cor indicada e o tamanho requerido. Habituado a lidar com as imperfeições da natureza, desde relâmpagos irregulares a bolbos de tulipas a necessitar de arredondamento, esse temor (antigo, reverencial, amargo e cheio de pudor) tomou conta de mim como uma ameaça incontrolável. Subitamente, imaginei fiscais ou vigilantes (modernos e tontinhos, pagos por todos nós, mas convencidos de que existe ou de que existirá um mundo perfeito) entrando pelo meu jardim e multando os diospiros por estarem maduros demais (como Dona Elaine os prefere para os lanches de sábado) ou endireitando os ramos dos hibiscos, empurrados pelo vento.
O velho Doutor Homem, meu pai, deixou-se enfeitiçar pelos jardins ingleses da sua juventude e abominava a esquadria clássica dos do Porto – achava aquela perfeição triste e decadente, própria de espíritos degradados. Por várias o imaginei, de noite, descendo as colinas do Palácio de Cristal, de tesoura em punho, repondo a irregularidade das japoneiras e abrindo sulcos no relvado cheio de geometrias, como um agrimensor tresloucado. O tempo deu-me razão: devemos ter medo do "mundo perfeito". Por detrás dessa ideia, velhaca e sumptuosa, há uma mediocridade inabalável.
in Domingo - Correio da Manhã - 16 Novembro 2008
Ao ler no jornal que a Comissão Europeia decidiu autorizar a venda – em lojas – de "frutas e legumes não normalizados", imagino para onde vão os nossos impostos ou as moderadas economias de uma vida: para ajudar a Comissão Europeia a construir um mundo perfeito, um mundo onde feijões e espinafres, maçarocas de milho ou simples repolhos queimados pela geada saem dos campos com o peso certo, a cor indicada e o tamanho requerido. Habituado a lidar com as imperfeições da natureza, desde relâmpagos irregulares a bolbos de tulipas a necessitar de arredondamento, esse temor (antigo, reverencial, amargo e cheio de pudor) tomou conta de mim como uma ameaça incontrolável. Subitamente, imaginei fiscais ou vigilantes (modernos e tontinhos, pagos por todos nós, mas convencidos de que existe ou de que existirá um mundo perfeito) entrando pelo meu jardim e multando os diospiros por estarem maduros demais (como Dona Elaine os prefere para os lanches de sábado) ou endireitando os ramos dos hibiscos, empurrados pelo vento.
O velho Doutor Homem, meu pai, deixou-se enfeitiçar pelos jardins ingleses da sua juventude e abominava a esquadria clássica dos do Porto – achava aquela perfeição triste e decadente, própria de espíritos degradados. Por várias o imaginei, de noite, descendo as colinas do Palácio de Cristal, de tesoura em punho, repondo a irregularidade das japoneiras e abrindo sulcos no relvado cheio de geometrias, como um agrimensor tresloucado. O tempo deu-me razão: devemos ter medo do "mundo perfeito". Por detrás dessa ideia, velhaca e sumptuosa, há uma mediocridade inabalável.
in Domingo - Correio da Manhã - 16 Novembro 2008
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