domingo, dezembro 28, 2008

A terceira geada de Inverno

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha uma relação fácil com o Natal – limitava-se a deixá-lo passar. Herdei dele o gosto desmesurado pela meia-estação, aquele período incerto e vago que incomoda os meteorologistas; o Inverno, com a sua liturgia de neve, geada, mar revolto na Foz, nuvens baixas, não fazia parte do seu universo. Dona Ester, minha mãe, preferia o Verão, com os areais das praias do Minho abandonadas às derradeiras brisas da tarde, cálidas e melancólicas como uma canção italiana. Ela lançava os filhos para a praia, sensibilizada pela algazarra de um bando de adolescentes barulhentos e saudáveis – e recolhia-os quando o Outono ia alto e ameaçador, descrente da puericultura portuguesa, que vivia cheia de agasalhos, protecção contra as bronquites e os resfriados, medo das correntes de ar e pavor das chuvas fora de época.

Portanto, o velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a deixar passar o Natal. Eu sou da época em que o Natal nos redimia com o seu mundo de presépios, sensibilidade infantil, histórias de reis magos e o nascimento do Menino. Quando, falhando a fé religiosa e a dogmática que lhe está na base, se começava a falar do Natal como "festa da família", o velho causídico desmoralizou – tal como a Tia Benedita, ele preferia que a família se reunisse em pleno Verão e no casarão de granito de Ponte de Lima, entre chorões e canteiros de lírios, para comemorar a sobrevivência do clã. Reunir a família em pleno Inverno, a uma mesa cheia e palradora, era agradável, mas não lhe merecia comoção bastante.

Hoje em dia, o Natal dos Homem vive daqueles rituais que antecedem o seu fim: uma tarde solarenga, um jantar demorado para exibir o serviço de Companhia das Índias (projecto de uma vida para a desconsolada Tia Benedita) e uma troca de presentes tardia. Há quatro anos deixei de fumar o meu charuto anual. Mantenho ainda o hábito de saborear o vinho do Porto de antigamente. Mas a minha memória vagueia por outras colinas, por onde arrasto a procissão de sobrinhos, parentes afastados, familiares desaparecidos. As minhas irmãs acham que o Natal é apenas o princípio da passagem de ano, uma festa pagã cuja razão de ser assenta em manigâncias de calendário.

Uma melancolia subtil paira sobre as coisas do Inverno. Os meus dois irmãos, mais novos e sempre atentos às desgraças da economia e da finança, prevêem tempos difíceis. Há muitos anos que ouço as suas profecias e, apesar de tudo, o Natal continua, de ano para ano, a reunir-nos à mesa.

in Domingo - Correio da Manhã - 28 Dezembro 2008