Viver apenas metade do dia
A pequena holandesa, Isabelle, a namorada do meu sobrinho Pedro, está quase portuguesa: durante as 'férias de Natal' já não contei com ela para me acompanhar na mesa do pequeno-almoço e criticar os outros habitantes da casa por se levantarem tarde demais. Geralmente dividíamos o primeiro dos pratinhos de torradas enquanto falávamos dos maus-hábitos dos ausentes: levantar tarde, deitar tarde demais, aproveitar apenas metade do dia. À medida que aprofundou o contacto com os vícios da 'civilização do sul', 'a pequena holandesa' (a designação é de Dona Elaine, a providencial governanta deste eremitério de Moledo) foi cedendo ao pernicioso contágio dos seus piores defeitos.
Creio que tem a ver, sobretudo, com a idade. Na minha adolescência, a luz eléctrica era um luxo e a sua distribuição abundante uma surpreendente raridade. Manter as luzes de casa acesas requeria um prolongamento da nossa existência – que nem sempre vinha, uma vez que era preciso erguer a horas de família laboriosa. Depois das onze da noite, não havia rádio; e (temo bem desiludir os meus sobrinhos-bisnetos) recordo aos mais desatentos que não havia televisão. Poderia haver luz pela noite fora, mas não havia o complexo de objectos, ocupações, distracções e apelos que hoje circulam em casa. Muitas vezes, na biblioteca (aquele soturno armazém de livros onde habito frequentemente), desligo as luzes e tapo os ouvidos como se pudesse regressar a esse mundo de silêncio em que os vultos desapareciam depois das onze da noite. A minha sobrinha Maria Luísa imita-me nestas circunstâncias, e senta-se junto da penumbra das estantes com o argumento de que a família se vai tornando numerosa; ela nunca aceitou o facto de a "pequena holandesa" ter sido aceite logo à primeira visita e chegou a mencionar, com alguma perversidade, o facto de na Holanda se fumar bastante haxixe.
Tanto eu como ela apreciamos esse momento dourado do dia, quando a luz se despede e a geada principia a anunciar-se entre a copa das árvores. A essa hora, durante as férias, os ocupantes do andar inferior começavam a ouvir-se a sair das tocas, preparando-se para mais uma noitada depois de terem perdido uma refeição e mais de metade do dia útil. Útil, quero dizer: útil para perceber a mágica luz dos primeiros dias de Janeiro. A vida destas pessoas está a ficar dramaticamente mais curta.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Janeiro 2009
Creio que tem a ver, sobretudo, com a idade. Na minha adolescência, a luz eléctrica era um luxo e a sua distribuição abundante uma surpreendente raridade. Manter as luzes de casa acesas requeria um prolongamento da nossa existência – que nem sempre vinha, uma vez que era preciso erguer a horas de família laboriosa. Depois das onze da noite, não havia rádio; e (temo bem desiludir os meus sobrinhos-bisnetos) recordo aos mais desatentos que não havia televisão. Poderia haver luz pela noite fora, mas não havia o complexo de objectos, ocupações, distracções e apelos que hoje circulam em casa. Muitas vezes, na biblioteca (aquele soturno armazém de livros onde habito frequentemente), desligo as luzes e tapo os ouvidos como se pudesse regressar a esse mundo de silêncio em que os vultos desapareciam depois das onze da noite. A minha sobrinha Maria Luísa imita-me nestas circunstâncias, e senta-se junto da penumbra das estantes com o argumento de que a família se vai tornando numerosa; ela nunca aceitou o facto de a "pequena holandesa" ter sido aceite logo à primeira visita e chegou a mencionar, com alguma perversidade, o facto de na Holanda se fumar bastante haxixe.
Tanto eu como ela apreciamos esse momento dourado do dia, quando a luz se despede e a geada principia a anunciar-se entre a copa das árvores. A essa hora, durante as férias, os ocupantes do andar inferior começavam a ouvir-se a sair das tocas, preparando-se para mais uma noitada depois de terem perdido uma refeição e mais de metade do dia útil. Útil, quero dizer: útil para perceber a mágica luz dos primeiros dias de Janeiro. A vida destas pessoas está a ficar dramaticamente mais curta.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Janeiro 2009
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