Coisas de família
O meu tio-avô Marcelo não foi banido da família – nem podia –, mas restam poucos retratos dele nas paredes do casarão de Ponte de Lima onde se albergam as nossas memórias. Salvo erro, a tia Benedita falava dele quando chegava ao Minho a suave canícula de Verão, porque isso lhe lembrava África e talvez os perigosos sertões e planaltos de Angola, cheios de perigos naturais, de animais à solta e de doenças ainda sem nome.
A família, como já contei ao leitor, tem poucas ligações com África – ficou traumatizada com a malária do tio Henrique, que regressou de Benguela doente e convencido de que ia compor uma obra sinfónica para relembrar a glória da Pátria, já que a sua carreira militar não lhe permitira batalhas heróicas. O velho Doutor Homem, meu pai, teve um trabalho sério e delicado para o convencer a desistir da empresa e a ficar-se pela prática do oboé, seu instrumento predilecto.
A história do tio Marcelo é inteiramente diferente e assemelha-se à de um aventureiro que viveu as suas aventuras só para nos espantar com a sua capacidade de sobreviver a todos os perigos, lá, nas savanas que prolongam o horizonte, nas florestas cheias de insectos e nas noites duvidosas do Império, longe do Minho – onde, como se sabe, está o marco geodésico que assinala o centro do Mundo, pelo menos do nosso mundo.
O tio Marcelo partiu para Angola porque não se quis casar com uma jovem de Vigo com quem tinha dançado num baile de verbena, à vista daquele mar cantado por Martim Codax. Consta que o tribunal de família o instigara ao matrimónio, depois de verificar a quantidade de viagens entre o Minho e a Galiza e o dinheiro gasto nos pequenos casinos clandestinos da Coruña e de Santiago, entre charutos canarinos e brandy Domecq. O remédio era casá-lo. Contra essa tirania, o tio Marcelo fugiu de paquete para Angola, de onde não mais voltou – mas de onde enviava periodicamente notícias de colheitas, negócios e cidades erguidas no meio de clareiras poeirentas e solitárias. O seu coração era bom; a sua vida deve ter sido matéria de um romance; a sua despedida deve ter sido tranquila.
Nestas noites de Inverno, folheando os álbuns de família, ocorre encontrar este e aquele, gente que só os velhos impedem de serem esquecidos porque a sua memória vai mais longe do que a própria vida. Vejo agora o tio Marcelo no varandim de um paquete, com um fato de cheviote, sorrindo para mim. E tenho saudades de um tempo que nem sequer vivi.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Janeiro 2009
A família, como já contei ao leitor, tem poucas ligações com África – ficou traumatizada com a malária do tio Henrique, que regressou de Benguela doente e convencido de que ia compor uma obra sinfónica para relembrar a glória da Pátria, já que a sua carreira militar não lhe permitira batalhas heróicas. O velho Doutor Homem, meu pai, teve um trabalho sério e delicado para o convencer a desistir da empresa e a ficar-se pela prática do oboé, seu instrumento predilecto.
A história do tio Marcelo é inteiramente diferente e assemelha-se à de um aventureiro que viveu as suas aventuras só para nos espantar com a sua capacidade de sobreviver a todos os perigos, lá, nas savanas que prolongam o horizonte, nas florestas cheias de insectos e nas noites duvidosas do Império, longe do Minho – onde, como se sabe, está o marco geodésico que assinala o centro do Mundo, pelo menos do nosso mundo.
O tio Marcelo partiu para Angola porque não se quis casar com uma jovem de Vigo com quem tinha dançado num baile de verbena, à vista daquele mar cantado por Martim Codax. Consta que o tribunal de família o instigara ao matrimónio, depois de verificar a quantidade de viagens entre o Minho e a Galiza e o dinheiro gasto nos pequenos casinos clandestinos da Coruña e de Santiago, entre charutos canarinos e brandy Domecq. O remédio era casá-lo. Contra essa tirania, o tio Marcelo fugiu de paquete para Angola, de onde não mais voltou – mas de onde enviava periodicamente notícias de colheitas, negócios e cidades erguidas no meio de clareiras poeirentas e solitárias. O seu coração era bom; a sua vida deve ter sido matéria de um romance; a sua despedida deve ter sido tranquila.
Nestas noites de Inverno, folheando os álbuns de família, ocorre encontrar este e aquele, gente que só os velhos impedem de serem esquecidos porque a sua memória vai mais longe do que a própria vida. Vejo agora o tio Marcelo no varandim de um paquete, com um fato de cheviote, sorrindo para mim. E tenho saudades de um tempo que nem sequer vivi.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Janeiro 2009
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