O Natal de Moledo
O jantar de Natal é em Moledo, embora uma parte da família, mais cosmopolita, ache que não faz sentido reunir-se neste eremitério para assinalar a sobrevivência dos Homem no início do século XXI, mais do que o nascimento de Cristo. Este último dado passa ao lado dos jantares de Natal, aqui e em grande parte das famílias. Eu nasci no princípio do século XX mas a minha herança é do século anterior. O velho Doutor Homem, meu pai, Dona Ester, minha mãe, a Tia Benedita, o Tio Álvaro e as memórias do meu clã particular pertencem, todos ao século XIX. O sonho da Tia Benedita era ouvir, nas Cortes, os discursos de José Acúrcio das Neves defendendo a legitimidade do senhor Dom Miguel; o velho Doutor Homem, meu pai, lia romances ingleses passados antes das duas guerras, como se a geopolítica europeia pudesse centrar-se, de novo, em Westminster. Como não conseguia, limitava-se a ler o "Telegraph" e a vestir como um sóbrio burguês de Londres. Essa Londres já não existia há muito, mas fazia-lhe falta, como a ordem que impôs à sua colecção de poesia inglesa nas estantes escuras da velha casa do Porto. Dona Ester, minha mãe, impunha um mínimo de razoabilidade nas coisas de família, e lidava com as várias mitologias caseiras como produto de adolescências tardias ou prolongadas. Era o nosso modo de vida: manter a excentricidade para não abrir as portas ao esquecimento.
Desde há vinte e seis anos que o Natal tem a marca de Moledo e a família vem visitar este Matusalém que toma os comprimidos a horas e mantém o hábito de encomendar charutos canarinos nas lojas de Vigo. Dona Elaine, a governanta, suspira pelo Natal de antanho, cerimonioso e decorado com a Companhia das Índias da Tia Benedita. A loiça mantém-se, mas o tom cerimonioso desapareceu com vantagem para um ruído crescente e para as visitas que vêm participar num jantar de outros tempos.
Isabelle, a "pequena holandesa", namorada do meu sobrinho Pedro, anunciou que chegará ao Porto na véspera de Natal – ela é o suplemento de cosmopolitismo numa família que já foi miguelista e hoje apenas conserva o retrato do Príncipe proscrito. A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga a cuidar da vida dos ricos, aconselhando-os a mudar a mobília e a alterar a cor dos tapetes, instala-se com antecipação em Moledo – apropriando-se da biblioteca aquecida e do quarto de onde se vê o mar. Eu abro o vinho do Porto. É a minha função desde há anos.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Dezembro 2008
Desde há vinte e seis anos que o Natal tem a marca de Moledo e a família vem visitar este Matusalém que toma os comprimidos a horas e mantém o hábito de encomendar charutos canarinos nas lojas de Vigo. Dona Elaine, a governanta, suspira pelo Natal de antanho, cerimonioso e decorado com a Companhia das Índias da Tia Benedita. A loiça mantém-se, mas o tom cerimonioso desapareceu com vantagem para um ruído crescente e para as visitas que vêm participar num jantar de outros tempos.
Isabelle, a "pequena holandesa", namorada do meu sobrinho Pedro, anunciou que chegará ao Porto na véspera de Natal – ela é o suplemento de cosmopolitismo numa família que já foi miguelista e hoje apenas conserva o retrato do Príncipe proscrito. A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga a cuidar da vida dos ricos, aconselhando-os a mudar a mobília e a alterar a cor dos tapetes, instala-se com antecipação em Moledo – apropriando-se da biblioteca aquecida e do quarto de onde se vê o mar. Eu abro o vinho do Porto. É a minha função desde há anos.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Dezembro 2008
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