A falta de interesse
Quando era jovem não tinha insónias. Atribuo o facto à minha vida desinteressante, distribuída pelo escritório, pelo cumprimento dos deveres profissionais, pelas amizades da época e pelas muitas horas dedicadas a leituras certamente enfadonhas. As minhas irmãs, que sempre me olharam com a curiosidade que se deveria devotar a uma espécie rara, e que nesse papel tentaram depois substituir Dona Ester (minha mãe), acrescentam a falta de preocupações familiares e a ausência de uma mulher que castigasse a leviandade do meu carácter.
Em seu entender, uma esposa deveria proporcionar-me um nível adequado de preocupações, de modo a economizar no sono e a manter-me acordado quando o corpo me ordenasse que dormisse. Admito que seja assim, mas não quero menosprezar o velho hábito de beber ‘café de cevada’ – uma das tradições do Porto – e de manter a rotina de jogar bridge em dias certos da semana. Esses horários e hábitos, que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram- -me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias.
As leituras enfadonhas ocupam um espaço determinante na biografia dos patriarcas e matriarcas da família, desde a Tia Benedita ao Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos. O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de bridge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico.
O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados modernamente e que despertaram em mim a vontade de dormir. Digo--o sem ironia: sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas, nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa 'falta de interesse'.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Janeiro 2009
Em seu entender, uma esposa deveria proporcionar-me um nível adequado de preocupações, de modo a economizar no sono e a manter-me acordado quando o corpo me ordenasse que dormisse. Admito que seja assim, mas não quero menosprezar o velho hábito de beber ‘café de cevada’ – uma das tradições do Porto – e de manter a rotina de jogar bridge em dias certos da semana. Esses horários e hábitos, que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram- -me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias.
As leituras enfadonhas ocupam um espaço determinante na biografia dos patriarcas e matriarcas da família, desde a Tia Benedita ao Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos. O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de bridge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico.
O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados modernamente e que despertaram em mim a vontade de dormir. Digo--o sem ironia: sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas, nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa 'falta de interesse'.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Janeiro 2009
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