A pontualidade do Verão
A minha memória dos anos em que havia férias é muito traiçoeira. Já expliquei ao leitor que o velho Doutor Homem, meu pai, só descansava realmente quando recolhia, a meio de Agosto, ao casarão de Ponte de Lima – mesmo depois da morte da matriarca da família, a Tia Benedita. Dona Ester, minha mãe, atribuía isso à necessidade de mostrar à descendência as últimas glórias da Companhia das Índias, loiça que era anualmente retirada dos armários em duas augustas ocasiões: no almoço de Páscoa, que coincidia, algumas vezes, com o aniversário da Tia Benedita; e no jantar de Natal. Abria-se uma excepção não-regulamentar durante certos Verões, quando a família se encontrava em Ponte de Lima naquela espécie de concerto campestre e desafinado, que era o ruído de várias gerações interrompendo o benigno silêncio das férias do velho Doutor Homem, meu pai. Como já contei, ele vingava-se oferecendo moedas aos netos e sobrinhos que conseguissem arrancar mais lírios dos canteiros.
Agosto era o mês mais tranquilo desse tempo, por muito que isso custe a acreditar aos meus sobrinhos, que vêem na ideia de férias um retrato de acampamentos dentro de casa e de uma balbúrdia permanente. O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que o seu conservadorismo se media pelas leituras que tinha feito e pela forma como ocupava o tempo de férias. E, na verdade, depois de gastar alguma energia e algum dinheiro a educar-nos durante quinze dias de viagem, entrava na casa de Ponte de Lima (pontualmente, ao dia dez de Agosto) com a sensação do dever cumprido e investido da missão de repousar das intempéries do resto do ano.
As férias eram um acontecimento moderno numa família que ou não as tinha (como o meu avô, que em Agosto preparava a contabilidade das vindimas que se aproximavam nas quintas do Douro) ou as gozava sem necessidade de calendário. O meu pai invejava, por isso, o irmão Alberto, considerado o aventureiro da família, dividido entre viagens pela Europa e longos retiros de trabalho no Porto ou na sua casa de S. Pedro de Arcos, onde se dedicava aos livros, à filatelia, à botânia e à cozinha regional. Recuperando os discos de Anna Moffo, a sua soprano, estirado naquilo que teria sido a sua biblioteca ideal (afastada dos corredores principais da casa), o velho advogado adormecia a meio da tarde convencido de que, finalmente, o mundo tinha alguma ordem e o movimento dos planetas algum sentido. Foi com ele que aprendi a arte, hoje desconhecida (pelo que vejo), de se retirar do mundo.
A casa de Moledo, povoada de ex-adolescentes durante os meses de verão, é uma imagem do que seriam as campanhas de Julio César, se eu estivesse na disposição de assumir o papel de Marco António. Limitei-me a estabelecer regras e a delimitar o território, estabelecendo que tenho direito a algumas horas de tranquilidade diária. Elas ocorrem, ordinariamente, durante a manhã. Não sei, hoje em dia, o que acontece de tão notável ao longo da noite, tirando “os razoáveis pecados da juventude”, porque toda a gente se deita tarde ou às primeiras horas do amanhecer.
Entretanto, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro regressou a Portugal e experimenta a sua primeira temporada de praia, no meio da turbamulta. Foi preciso explicar, àquele rigor formado pelo calvinismo de Haia e Amesterdão, o significado da expressão “época balnear”. Ela não compreendia o que as pessoas faziam durante a “época balnear” e foi preciso explicar-lhe, com abundância de exemplos e de conselhos médicos, que – pura e simplesmente – se fazia nada ou muito pouco. Ela não acreditou. Encontro-a algumas vezes, sentada na varanda, ao fim da tarde. Achei que talvez estivesse perplexa com o hábito da família, mas verifico – com alegria – que se adaptou sem dificuldade.
A minha sobrinha Maria Luísa (que já se habituou à cunhada que veio do país dos pólderes) está de viagem na Tailândia mas telefonou a lembrar que entrará em Moledo na data aprazada. Expliquei à holandesa que somos muito disciplinados e pontuais em matéria de preguiça.
in Revista Notícias Sábado – 21 Julho 2007
Agosto era o mês mais tranquilo desse tempo, por muito que isso custe a acreditar aos meus sobrinhos, que vêem na ideia de férias um retrato de acampamentos dentro de casa e de uma balbúrdia permanente. O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que o seu conservadorismo se media pelas leituras que tinha feito e pela forma como ocupava o tempo de férias. E, na verdade, depois de gastar alguma energia e algum dinheiro a educar-nos durante quinze dias de viagem, entrava na casa de Ponte de Lima (pontualmente, ao dia dez de Agosto) com a sensação do dever cumprido e investido da missão de repousar das intempéries do resto do ano.
As férias eram um acontecimento moderno numa família que ou não as tinha (como o meu avô, que em Agosto preparava a contabilidade das vindimas que se aproximavam nas quintas do Douro) ou as gozava sem necessidade de calendário. O meu pai invejava, por isso, o irmão Alberto, considerado o aventureiro da família, dividido entre viagens pela Europa e longos retiros de trabalho no Porto ou na sua casa de S. Pedro de Arcos, onde se dedicava aos livros, à filatelia, à botânia e à cozinha regional. Recuperando os discos de Anna Moffo, a sua soprano, estirado naquilo que teria sido a sua biblioteca ideal (afastada dos corredores principais da casa), o velho advogado adormecia a meio da tarde convencido de que, finalmente, o mundo tinha alguma ordem e o movimento dos planetas algum sentido. Foi com ele que aprendi a arte, hoje desconhecida (pelo que vejo), de se retirar do mundo.
A casa de Moledo, povoada de ex-adolescentes durante os meses de verão, é uma imagem do que seriam as campanhas de Julio César, se eu estivesse na disposição de assumir o papel de Marco António. Limitei-me a estabelecer regras e a delimitar o território, estabelecendo que tenho direito a algumas horas de tranquilidade diária. Elas ocorrem, ordinariamente, durante a manhã. Não sei, hoje em dia, o que acontece de tão notável ao longo da noite, tirando “os razoáveis pecados da juventude”, porque toda a gente se deita tarde ou às primeiras horas do amanhecer.
Entretanto, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro regressou a Portugal e experimenta a sua primeira temporada de praia, no meio da turbamulta. Foi preciso explicar, àquele rigor formado pelo calvinismo de Haia e Amesterdão, o significado da expressão “época balnear”. Ela não compreendia o que as pessoas faziam durante a “época balnear” e foi preciso explicar-lhe, com abundância de exemplos e de conselhos médicos, que – pura e simplesmente – se fazia nada ou muito pouco. Ela não acreditou. Encontro-a algumas vezes, sentada na varanda, ao fim da tarde. Achei que talvez estivesse perplexa com o hábito da família, mas verifico – com alegria – que se adaptou sem dificuldade.
A minha sobrinha Maria Luísa (que já se habituou à cunhada que veio do país dos pólderes) está de viagem na Tailândia mas telefonou a lembrar que entrará em Moledo na data aprazada. Expliquei à holandesa que somos muito disciplinados e pontuais em matéria de preguiça.
in Revista Notícias Sábado – 21 Julho 2007
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