Elogio do bronzeado de Moledo
Havia um tempo em que os Verões tinham várias estações do ano. Não tenho saudades do tempo que passa – limito-me a lembrar as manhãs de praia e o que vem à memória, esse novelo. O velho Doutor Homem, meu pai, foi o responsável pela introdução do tema do “iodo” paredes dentro, mas o leitor já deve sabê-lo. Com o iodo (que, bem vistas as coisas, não passa de um perfume saudável e exclusivo das praias do Minho) vieram os fatos de banho, a vaidade da época balnear e a preguiça. Um por cada vez.
Os fatos de banho da minha adolescência tinham, como dizem os meus sobrinhos – ao folhearem os álbuns de fotografias da família –, gola alta. Não era verdade. Dona Ester, minha mãe, queria-os mais liberais porque acreditava nas virtudes do sol mais do que nas do iodo, e sempre imaginou que Gary Cooper tinha sido abençoado com o bronzeado eterno que ela decidiu ser um dos atributos da beleza verdadeira. Olhando para os filhos, despejando-os no areal de Moledo ou nas rochas da Apúlia (ela foi uma das primeiras senhoras da sua geração a conduzir um automóvel), recomendava-lhes que arrecadassem toda a beleza disponível, ou seja, um sol saudável e, afinal de contas, barato.
Mas o corpo é um bem escasso. Gasta-se frequentemente sem darmos por isso, esgota-se de ano para ano como um risco de areia apontado ao morro de Santa Tecla, para mais tarde se assemelhar ao esqueleto das barraquinhas de madeira e lona daquele areal que ainda frequento todos os anos, às primeiras horas da manhã ou, mais raramente, quando a tarde desce sobre as ondas – para beber um refresco de família (a limonada de outros tempos já não existe senão em casa, adocicada, baça, amarelada pelo açúcar que os médicos interditam).
Por vezes imagino que este litoral foi deserto. Vêm-me à memória coplas antigas, versos dos poetas que sentiram essa seta atravessar-lhes o coração. Martim Codax e os trovadores de Vigo estão fora da minha jurisdição, mas gosto de evocá-los entre as escarpas do litoral.
Na semana passada, cumprindo um hábito irregular, fomos a Vigo para almoçar; por onde passa a estrada eram antes caminhos arriscados que os meus antepassados percorreram a cavalo, e que os contrabandistas conheciam melhor. O que não se perdeu foi o ar do mar, a substância do litoral, propriamente dito – e o vento galego, essa obscura mistura de rosmaninho e de sargaço. Falo dos meus antepassados porque alguém teria, antes de mim, de criar ou de estabelecer a atracção dos Homem por estes caminhos. Mesmo o meu avô Homem, que se dedicou mais ao Douro do que ao Minho (ele administrava as velhas quintas dos ingleses, dos irlandeses, dos franceses e do poeta Guerra Junqueiro), gostava de – ainda que como excepção – visitar as terras onde vetustíssimos Homem de outras eras, a cavalo, tinham aprendido a apreciar as mimosas quezilentas e amarelas dos seus caminhos, e a dizer o nome dos seus amigos, de Ponte de Lima a Valença, da Barca a Cerveira e Caminha. Ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai (e de mim), o avô Homem não era um literato nem se dedicava à bibliofilia, esse vício que empenava as estantes da casa do Tio Alberto (em São Pedro de Arcos), poliglota, botânico, conselheiro jurídico mais do que advogado.
A nossa família é uma constelação de vícios e de fortunas. Tivemos um tio-avô de Cerveira que, depois ter enviuvado, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel e mantinha em sua casa uns aposentos “do Remexido”; o “tio brasileiro”, Domingos Augusto, era o zénite da “ala esquerda” da família, porque conhecera pedreiros-livres no Pernambuco e se relacionara com senhoras dos Trópicos, se bem que temesse os governos que lhe iam cobrar o imposto à fazenda arrecadada na sua quinta de Afife; e recordo ainda o tio-avô dos Arcos de Valdevez, que permanece nos anais da família como “aquele que raptou uma noiva à porta da igreja”, para depois se casar com ela em Espanha (ele temia que o padre do Barroso, que estava destinado à celebração, não fosse legitimista como os do Lugo). Todos eles estão à minha volta no areal de Moledo, como fantasmas sorrindo para as dunas. E Dona Ester também – apreciando a beleza que ela acreditava nascer na pele bronzeada.
in Revista Notícias Sábado – 7 de Julho 2007
Os fatos de banho da minha adolescência tinham, como dizem os meus sobrinhos – ao folhearem os álbuns de fotografias da família –, gola alta. Não era verdade. Dona Ester, minha mãe, queria-os mais liberais porque acreditava nas virtudes do sol mais do que nas do iodo, e sempre imaginou que Gary Cooper tinha sido abençoado com o bronzeado eterno que ela decidiu ser um dos atributos da beleza verdadeira. Olhando para os filhos, despejando-os no areal de Moledo ou nas rochas da Apúlia (ela foi uma das primeiras senhoras da sua geração a conduzir um automóvel), recomendava-lhes que arrecadassem toda a beleza disponível, ou seja, um sol saudável e, afinal de contas, barato.
Mas o corpo é um bem escasso. Gasta-se frequentemente sem darmos por isso, esgota-se de ano para ano como um risco de areia apontado ao morro de Santa Tecla, para mais tarde se assemelhar ao esqueleto das barraquinhas de madeira e lona daquele areal que ainda frequento todos os anos, às primeiras horas da manhã ou, mais raramente, quando a tarde desce sobre as ondas – para beber um refresco de família (a limonada de outros tempos já não existe senão em casa, adocicada, baça, amarelada pelo açúcar que os médicos interditam).
Por vezes imagino que este litoral foi deserto. Vêm-me à memória coplas antigas, versos dos poetas que sentiram essa seta atravessar-lhes o coração. Martim Codax e os trovadores de Vigo estão fora da minha jurisdição, mas gosto de evocá-los entre as escarpas do litoral.
Na semana passada, cumprindo um hábito irregular, fomos a Vigo para almoçar; por onde passa a estrada eram antes caminhos arriscados que os meus antepassados percorreram a cavalo, e que os contrabandistas conheciam melhor. O que não se perdeu foi o ar do mar, a substância do litoral, propriamente dito – e o vento galego, essa obscura mistura de rosmaninho e de sargaço. Falo dos meus antepassados porque alguém teria, antes de mim, de criar ou de estabelecer a atracção dos Homem por estes caminhos. Mesmo o meu avô Homem, que se dedicou mais ao Douro do que ao Minho (ele administrava as velhas quintas dos ingleses, dos irlandeses, dos franceses e do poeta Guerra Junqueiro), gostava de – ainda que como excepção – visitar as terras onde vetustíssimos Homem de outras eras, a cavalo, tinham aprendido a apreciar as mimosas quezilentas e amarelas dos seus caminhos, e a dizer o nome dos seus amigos, de Ponte de Lima a Valença, da Barca a Cerveira e Caminha. Ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai (e de mim), o avô Homem não era um literato nem se dedicava à bibliofilia, esse vício que empenava as estantes da casa do Tio Alberto (em São Pedro de Arcos), poliglota, botânico, conselheiro jurídico mais do que advogado.
A nossa família é uma constelação de vícios e de fortunas. Tivemos um tio-avô de Cerveira que, depois ter enviuvado, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel e mantinha em sua casa uns aposentos “do Remexido”; o “tio brasileiro”, Domingos Augusto, era o zénite da “ala esquerda” da família, porque conhecera pedreiros-livres no Pernambuco e se relacionara com senhoras dos Trópicos, se bem que temesse os governos que lhe iam cobrar o imposto à fazenda arrecadada na sua quinta de Afife; e recordo ainda o tio-avô dos Arcos de Valdevez, que permanece nos anais da família como “aquele que raptou uma noiva à porta da igreja”, para depois se casar com ela em Espanha (ele temia que o padre do Barroso, que estava destinado à celebração, não fosse legitimista como os do Lugo). Todos eles estão à minha volta no areal de Moledo, como fantasmas sorrindo para as dunas. E Dona Ester também – apreciando a beleza que ela acreditava nascer na pele bronzeada.
in Revista Notícias Sábado – 7 de Julho 2007
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