Emigrados de Ponte de Lima
Ainda não começou a temporada de praia e já vieram as chuvas. A meteorologia anda inconsolável e perdeu o rumo. Dona Elaine, de qualquer modo, entrou naquele período que ela designa de "planeamento geral". A governanta de Moledo ouviu falar de "planeamento geral" na televisão e atribui à expressão um significado miraculoso e salvador por antecipação. Basta fazer um "planeamento geral" e as coisas correrão melhor, a meteorologia regressará à sua modorra e o correio chegará a horas.
Longe de mim, que pertenço ao século passado – e talvez mesmo ao anterior – desmentir essa evidência que, em Maio e nas primeiras semanas de Junho, traz a filha de emigrantes minhotos no Brasil entusiasmada com o Verão e com a ocupação de todos os quartos do eremitério de Moledo. Há uma longa série de preparativos a enumerar, o que atrasou consideravelmente as tarefas mais imediatas. Desde logo, as escalas. Há quem queira a segunda quinzena de Julho e quem preveja um Verão quente demais – e reserve os primeiros dias de Setembro, quando os pinhais amanhecem com a amena neblina do Minho de outrora. Há quem não dispense uma semana de Agosto mas deseja rumar a outro hemisfério para cumprir o calendário das migrações sazonais.
As migrações sazonais, justamente, interessavam muito o velho doutor Homem, meu pai, que achava o período de férias encantador e muito próximo do sublime – se o passasse em Ponte de Lima, longe dos acontecimentos, próximo dos netos e de uma velha colecção de discos que ouvia sem cessar quando chegava a hora da sesta. Durante a nossa adolescência de rapazes e raparigas, a família partiu por várias vezes na direcção da Grande Europa, ocupando quartos de hotel e visitando cidades. A Grande Europa, na altura, só começava vinte quilómetros depois de Hendaye (quando já não se pressentia Espanha no horizonte) e nas proximidades de Biarritz. O grande problema de Biarritz é que a "estância", como nessa altura se dizia no Porto, estava cheia de outros portuenses que nutriam pela Península o mesmo desinteresse e até desprezo. A família rumou então para outras paragens, desejosa de civilização, de História e de línguas estrangeiras, coisa que não encontrava – com esse regime de abundância – dentro das nossas fronteiras.
Regressávamos desse período de quinze dias de férias com maneiras à mesa, uma mala de pequenas recordações (como a caneta Parker com que escrevo estas crónicas semanais) e um ligeiro cansaço. E, então, começava a emigração fatal para Ponte de Lima, de onde a família jurava que ninguém conseguia retirá-la até que terminasse Agosto e viessem as primeiras neblinas de Setembro. Era sempre mentira, mas a maior parte de nós julgava-se verdadeiramente emigrada em Ponte de Lima, no casarão que ainda hoje conserva algumas memórias e pudores dos Homem, mesmo depois de a tia Benedita ter declarado, com alguma irritação, que não estava para permitir que um bando de ateus, candidatos a pedreiros-livres e apóstatas fosse para o Velho Minho discutir – à mesa, como de costume - Évora Monte, autores devassos que tinham contemporizado com o adultério (ela guardava um pequeno rancor a Camilo) e até futebol, uma novidade da época. A tia Benedita referia-se a nós, e ela sabia que os passeios por Paris, Nice ou Roma não eram um bom prenúncio para a moralidade daqueles dias. Ela não viu os retratos de Mary Quant nem assistiu ao descalabro das classes médias, mas, como amostra, aquele bando era suficiente.
Moledo no Verão tem um certo ar da Ponte de Lima de então, com a subtil diferença de o iodo não constituir um argumento de força, hoje em dia. Como já expliquei ao leitor, em outras ocasiões, o iodo é um tempero romântico e médico para justificar a permanência nos areais diante de Santa Tecla e da ínsua. No entanto, na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa explicou aos filhos que vinha aí um grande Verão cheio de iodo. Limitei-me a confirmar, piscando-lhe o olho. A mulher de trinta anos consegue tudo.
in Revista Notícias Sábado – 26 Maio 2007
Longe de mim, que pertenço ao século passado – e talvez mesmo ao anterior – desmentir essa evidência que, em Maio e nas primeiras semanas de Junho, traz a filha de emigrantes minhotos no Brasil entusiasmada com o Verão e com a ocupação de todos os quartos do eremitério de Moledo. Há uma longa série de preparativos a enumerar, o que atrasou consideravelmente as tarefas mais imediatas. Desde logo, as escalas. Há quem queira a segunda quinzena de Julho e quem preveja um Verão quente demais – e reserve os primeiros dias de Setembro, quando os pinhais amanhecem com a amena neblina do Minho de outrora. Há quem não dispense uma semana de Agosto mas deseja rumar a outro hemisfério para cumprir o calendário das migrações sazonais.
As migrações sazonais, justamente, interessavam muito o velho doutor Homem, meu pai, que achava o período de férias encantador e muito próximo do sublime – se o passasse em Ponte de Lima, longe dos acontecimentos, próximo dos netos e de uma velha colecção de discos que ouvia sem cessar quando chegava a hora da sesta. Durante a nossa adolescência de rapazes e raparigas, a família partiu por várias vezes na direcção da Grande Europa, ocupando quartos de hotel e visitando cidades. A Grande Europa, na altura, só começava vinte quilómetros depois de Hendaye (quando já não se pressentia Espanha no horizonte) e nas proximidades de Biarritz. O grande problema de Biarritz é que a "estância", como nessa altura se dizia no Porto, estava cheia de outros portuenses que nutriam pela Península o mesmo desinteresse e até desprezo. A família rumou então para outras paragens, desejosa de civilização, de História e de línguas estrangeiras, coisa que não encontrava – com esse regime de abundância – dentro das nossas fronteiras.
Regressávamos desse período de quinze dias de férias com maneiras à mesa, uma mala de pequenas recordações (como a caneta Parker com que escrevo estas crónicas semanais) e um ligeiro cansaço. E, então, começava a emigração fatal para Ponte de Lima, de onde a família jurava que ninguém conseguia retirá-la até que terminasse Agosto e viessem as primeiras neblinas de Setembro. Era sempre mentira, mas a maior parte de nós julgava-se verdadeiramente emigrada em Ponte de Lima, no casarão que ainda hoje conserva algumas memórias e pudores dos Homem, mesmo depois de a tia Benedita ter declarado, com alguma irritação, que não estava para permitir que um bando de ateus, candidatos a pedreiros-livres e apóstatas fosse para o Velho Minho discutir – à mesa, como de costume - Évora Monte, autores devassos que tinham contemporizado com o adultério (ela guardava um pequeno rancor a Camilo) e até futebol, uma novidade da época. A tia Benedita referia-se a nós, e ela sabia que os passeios por Paris, Nice ou Roma não eram um bom prenúncio para a moralidade daqueles dias. Ela não viu os retratos de Mary Quant nem assistiu ao descalabro das classes médias, mas, como amostra, aquele bando era suficiente.
Moledo no Verão tem um certo ar da Ponte de Lima de então, com a subtil diferença de o iodo não constituir um argumento de força, hoje em dia. Como já expliquei ao leitor, em outras ocasiões, o iodo é um tempero romântico e médico para justificar a permanência nos areais diante de Santa Tecla e da ínsua. No entanto, na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa explicou aos filhos que vinha aí um grande Verão cheio de iodo. Limitei-me a confirmar, piscando-lhe o olho. A mulher de trinta anos consegue tudo.
in Revista Notícias Sábado – 26 Maio 2007
<< Home