sábado, junho 16, 2007

Os fantasmas do Verão

Todos os anos, nesta época, o velho doutor Homem, meu pai, suspirava por ostras. Era um queixume surdo e inclemente, que Portugal ouviu durante muito tempo. As ostras não eram propriamente um luxo na orla marítima da Galiza, e a recordação das suas viagens à Corunha ou a Vigo trazia-lhe aquela memória salgada arrancada ao mar frio deste lado da Península. A sua excentricidade chegou a levá-lo a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e o velho reino das Astúrias, porque lhe disseram que Don Álvaro Cunqueiro prezava especialmente essas ostras. Não quis deixar o crédito, inteiro e solitário, nas mãos do académico - e partiu para aquelas falésias, na compa­nhia do então director do 'Progreso de Lugo', que tinha famí­lia perto de Melgaço e era um teórico da culinária galega, para além de ter nascido nos arredores de Mondonedo, a terra de Cunqueiro.

O meu pai insistia que o escritor, por ter nascido no vale, não podia degustar inteiramente as ostras daquelas praias, contaminadas, ao longe, pelo Cantábrico. Era conversa fiada. Mondonedo, famosa pelas suas trutas e salmões, mas também por ser terra "de pão, boas águas e latim", como dizia Cunqueiro, era uma porta aberta na direcção do mar. O jornalista do 'Lugo' (que tinha uma paixão pela ópera desde que escutara Manolo Cortés no teatro de Ribadeo, durante uma récita oferecida pêlos Ruisefiores dei Eo) visitou por duas vezes a casa de Ponte de Lima, durante o Verão, mas nunca trouxe ostras. Vinha ver o ciumen­to, como ele dizia, achando graça à perseguição que o velho doutor Homem, meu pai, fazia às enumerações gastronómicas do autor da 'Escola de Mencineiros'.

Tudo isto ocupava uma parte do Verão, a mais cómi­ca e literária. Nessa altura, os areais de Moledo (con­quistados para a família, definitivamente, só a partir dos anos setenta, quando a "época balnear da ínsua" era uma excentricidade) ainda não constituíam uma dependência da Academia Sueca e não se liam 'best-sellers' à beira do mar.

As leituras de Verão disputavam terreno com os chamados "amores de Verão", que nasciam para fazer respeitar a tradição romântica do lugar. Os meus sobrinhos querem, com alguma frequência, saber se naquela altura já havia escândalos amoro­sos. Se confirmo, logo se abre uma brecha para considerar que as velhas gerações conheciam abundantemente o pecado e não têm razões para lamentar os infortú­nios da actualidade.

Ora, o Verão é um território do pecado. A tia Benedita sabia-o bem – e tratava-nos, de Junho a Setembro, como excomunga­dos, exigindo que Ponte de Lima escapas­se à frivolidade balnear que arrastávamos connosco. Um dos meus irmãos conven­ceu-me, nessa altura, a alugar um barco para exibir durante o Verão em tranquilos cruzeiros que subiam até Caminha e Cerveira, rondando a ilha da Boega (protegida pela Guarda Fiscal, não fosse transformar-se em albergue de contrabando vindo de La Guardia); como se esperava, o assunto foi muito comentado – passeios pelo rio não requeriam muita sapiência mas eram um espectáculo ofere­cido no palco do crepúsculo mais belo das redondezas. A vida de marinheiro durou três ou quatro épocas, durante as quais se festejou bastante e eu mantive o meu propósito de celibatário (o meu irmão casou no Verão seguinte), muito apoiado pêlos dois ramos da família, o ultramontano e o cartista. O primeiro tinha na matriarca, a tia Benedita, uma voz de comando à altura - achando que "as mulheres de hoje" eram um caminho acelerado para a infelicidade. O segundo, liderado pelo tio Alberto, achava que o mundo não acabava num matri­mónio celebrado nas vésperas da Senhora da Agonia.

Dei razão a ambos, se bem que os amores do tio Alberto fossem mais interessantes. A sua casa de S. Pedro de Arcos era o santuário de um aventureiro, como já escrevi em tempos. A esta distância, relembro as suas memórias como se fossem minhas. De certa maneira, ele é o testemunho mais interessante desses anos, regressando sempre (de Londres, da Suíça ou do Cáspio) às tentações da sua biblioteca como São Jerónimo lutando com o pecado. A minha sobrinha, por exemplo, vai partir na próxima sema­na para a Tailândia. Mas também ela sabe que Verão não é Verão sem os fantasmas abrigados sob o toldo familiar da praia de Moledo, alugado à época.

in Revista Notícias Sábado – 16 Junho 2007