Os fantasmas do Verão
Todos os anos, nesta época, o velho doutor Homem, meu pai, suspirava por ostras. Era um queixume surdo e inclemente, que Portugal ouviu durante muito tempo. As ostras não eram propriamente um luxo na orla marítima da Galiza, e a recordação das suas viagens à Corunha ou a Vigo trazia-lhe aquela memória salgada arrancada ao mar frio deste lado da Península. A sua excentricidade chegou a levá-lo a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e o velho reino das Astúrias, porque lhe disseram que Don Álvaro Cunqueiro prezava especialmente essas ostras. Não quis deixar o crédito, inteiro e solitário, nas mãos do académico - e partiu para aquelas falésias, na companhia do então director do 'Progreso de Lugo', que tinha família perto de Melgaço e era um teórico da culinária galega, para além de ter nascido nos arredores de Mondonedo, a terra de Cunqueiro.
O meu pai insistia que o escritor, por ter nascido no vale, não podia degustar inteiramente as ostras daquelas praias, contaminadas, ao longe, pelo Cantábrico. Era conversa fiada. Mondonedo, famosa pelas suas trutas e salmões, mas também por ser terra "de pão, boas águas e latim", como dizia Cunqueiro, era uma porta aberta na direcção do mar. O jornalista do 'Lugo' (que tinha uma paixão pela ópera desde que escutara Manolo Cortés no teatro de Ribadeo, durante uma récita oferecida pêlos Ruisefiores dei Eo) visitou por duas vezes a casa de Ponte de Lima, durante o Verão, mas nunca trouxe ostras. Vinha ver o ciumento, como ele dizia, achando graça à perseguição que o velho doutor Homem, meu pai, fazia às enumerações gastronómicas do autor da 'Escola de Mencineiros'.
Tudo isto ocupava uma parte do Verão, a mais cómica e literária. Nessa altura, os areais de Moledo (conquistados para a família, definitivamente, só a partir dos anos setenta, quando a "época balnear da ínsua" era uma excentricidade) ainda não constituíam uma dependência da Academia Sueca e não se liam 'best-sellers' à beira do mar.
As leituras de Verão disputavam terreno com os chamados "amores de Verão", que nasciam para fazer respeitar a tradição romântica do lugar. Os meus sobrinhos querem, com alguma frequência, saber se naquela altura já havia escândalos amorosos. Se confirmo, logo se abre uma brecha para considerar que as velhas gerações conheciam abundantemente o pecado e não têm razões para lamentar os infortúnios da actualidade.
Ora, o Verão é um território do pecado. A tia Benedita sabia-o bem – e tratava-nos, de Junho a Setembro, como excomungados, exigindo que Ponte de Lima escapasse à frivolidade balnear que arrastávamos connosco. Um dos meus irmãos convenceu-me, nessa altura, a alugar um barco para exibir durante o Verão em tranquilos cruzeiros que subiam até Caminha e Cerveira, rondando a ilha da Boega (protegida pela Guarda Fiscal, não fosse transformar-se em albergue de contrabando vindo de La Guardia); como se esperava, o assunto foi muito comentado – passeios pelo rio não requeriam muita sapiência mas eram um espectáculo oferecido no palco do crepúsculo mais belo das redondezas. A vida de marinheiro durou três ou quatro épocas, durante as quais se festejou bastante e eu mantive o meu propósito de celibatário (o meu irmão casou no Verão seguinte), muito apoiado pêlos dois ramos da família, o ultramontano e o cartista. O primeiro tinha na matriarca, a tia Benedita, uma voz de comando à altura - achando que "as mulheres de hoje" eram um caminho acelerado para a infelicidade. O segundo, liderado pelo tio Alberto, achava que o mundo não acabava num matrimónio celebrado nas vésperas da Senhora da Agonia.
Dei razão a ambos, se bem que os amores do tio Alberto fossem mais interessantes. A sua casa de S. Pedro de Arcos era o santuário de um aventureiro, como já escrevi em tempos. A esta distância, relembro as suas memórias como se fossem minhas. De certa maneira, ele é o testemunho mais interessante desses anos, regressando sempre (de Londres, da Suíça ou do Cáspio) às tentações da sua biblioteca como São Jerónimo lutando com o pecado. A minha sobrinha, por exemplo, vai partir na próxima semana para a Tailândia. Mas também ela sabe que Verão não é Verão sem os fantasmas abrigados sob o toldo familiar da praia de Moledo, alugado à época.
in Revista Notícias Sábado – 16 Junho 2007
O meu pai insistia que o escritor, por ter nascido no vale, não podia degustar inteiramente as ostras daquelas praias, contaminadas, ao longe, pelo Cantábrico. Era conversa fiada. Mondonedo, famosa pelas suas trutas e salmões, mas também por ser terra "de pão, boas águas e latim", como dizia Cunqueiro, era uma porta aberta na direcção do mar. O jornalista do 'Lugo' (que tinha uma paixão pela ópera desde que escutara Manolo Cortés no teatro de Ribadeo, durante uma récita oferecida pêlos Ruisefiores dei Eo) visitou por duas vezes a casa de Ponte de Lima, durante o Verão, mas nunca trouxe ostras. Vinha ver o ciumento, como ele dizia, achando graça à perseguição que o velho doutor Homem, meu pai, fazia às enumerações gastronómicas do autor da 'Escola de Mencineiros'.
Tudo isto ocupava uma parte do Verão, a mais cómica e literária. Nessa altura, os areais de Moledo (conquistados para a família, definitivamente, só a partir dos anos setenta, quando a "época balnear da ínsua" era uma excentricidade) ainda não constituíam uma dependência da Academia Sueca e não se liam 'best-sellers' à beira do mar.
As leituras de Verão disputavam terreno com os chamados "amores de Verão", que nasciam para fazer respeitar a tradição romântica do lugar. Os meus sobrinhos querem, com alguma frequência, saber se naquela altura já havia escândalos amorosos. Se confirmo, logo se abre uma brecha para considerar que as velhas gerações conheciam abundantemente o pecado e não têm razões para lamentar os infortúnios da actualidade.
Ora, o Verão é um território do pecado. A tia Benedita sabia-o bem – e tratava-nos, de Junho a Setembro, como excomungados, exigindo que Ponte de Lima escapasse à frivolidade balnear que arrastávamos connosco. Um dos meus irmãos convenceu-me, nessa altura, a alugar um barco para exibir durante o Verão em tranquilos cruzeiros que subiam até Caminha e Cerveira, rondando a ilha da Boega (protegida pela Guarda Fiscal, não fosse transformar-se em albergue de contrabando vindo de La Guardia); como se esperava, o assunto foi muito comentado – passeios pelo rio não requeriam muita sapiência mas eram um espectáculo oferecido no palco do crepúsculo mais belo das redondezas. A vida de marinheiro durou três ou quatro épocas, durante as quais se festejou bastante e eu mantive o meu propósito de celibatário (o meu irmão casou no Verão seguinte), muito apoiado pêlos dois ramos da família, o ultramontano e o cartista. O primeiro tinha na matriarca, a tia Benedita, uma voz de comando à altura - achando que "as mulheres de hoje" eram um caminho acelerado para a infelicidade. O segundo, liderado pelo tio Alberto, achava que o mundo não acabava num matrimónio celebrado nas vésperas da Senhora da Agonia.
Dei razão a ambos, se bem que os amores do tio Alberto fossem mais interessantes. A sua casa de S. Pedro de Arcos era o santuário de um aventureiro, como já escrevi em tempos. A esta distância, relembro as suas memórias como se fossem minhas. De certa maneira, ele é o testemunho mais interessante desses anos, regressando sempre (de Londres, da Suíça ou do Cáspio) às tentações da sua biblioteca como São Jerónimo lutando com o pecado. A minha sobrinha, por exemplo, vai partir na próxima semana para a Tailândia. Mas também ela sabe que Verão não é Verão sem os fantasmas abrigados sob o toldo familiar da praia de Moledo, alugado à época.
in Revista Notícias Sábado – 16 Junho 2007
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