O nosso miguelismo
Escrevo à mão, tenho tinteiro e a caneta é uma ‘Parker’ que já cruzou os destinos de três gerações. Mesmo assim, a família surpreende-se quando lê estas crónicas e descobre que, por detrás do funâmbulo que conhecem, há um escândalo em perspectiva. Desta vez, uma das minhas irmãs protestou a propósito de uma crónica em que menciono as opções políticas da família: entre o “ultramontanismo” e o “cartismo”.
Verdadeiramente, nunca houve ultramontanos em Ponte de Lima tirando fases da existência da Tia Benedita, quando lhe parecia que os sobrinhos e netos andavam tentados pelo demónio. Como o demónio era uma categoria moral e não uma personagem substantiva, o seu ultramontanismo era tido na conta de um pequeno delírio das nossas províncias – as que desconfiavam da República como antes tinham execrado Passos Manuel, José Estêvão e os Cabrais.
A única vantagem do ultramontanismo era, rigorosamente, taxinómina: tudo o que lhe era estranho cabia no campo do inimigo. Tamanha simplicidade era comovente e simplificadora, ainda que injusta. Se não soubéssemos da generosidade fria mas autêntica da Tia Benedita, julgaríamos que a senhora estaria predestinada a vir para a rua dar vivas à Vilafrancada – mas “o inimigo” era-lhe profundamente necessário como um tónus para os males de espírito, evitando o ressentimento. Em boa verdade, era uma das condições admitidas para a sua íntima felicidade.
A família foi pouco cartista, mesmo assim. Por conveniência, mas sem ambição, tinha – digamos – os seus espiões. À medida que os ‘revolucionários’ se transformavam em ‘reformistas’, e que os ‘reformistas’ se mudavam ‘regeneradores’ e, depois, em ‘conservadores’, não havendo já ‘radicais’, os Homem repousaram e puderam voltar a olhar, com discreta melancolia, para o retrato do Senhor D. Miguel, estacionado no casarão de Ponte de Lima.
O mundo, ordinariamente (como concluiu o meu bisavô, o último dos nossos miguelistas de raiz), gira sempre para o mesmo lado. Munidos desta certeza, nem o meu avô nem o velho Doutor Homem, meu pai, se preocuparam mais com o assunto, decretando que as velhas histórias políticas da família podiam ser, definitivamente, arrumadas – e o nosso nome reabilitado para os tempos modernos.
Era mentira. Também era tranquilizador, mas era mentira. Quando se chegava a vias de facto, ou seja, àquele momento em que se corria o risco de entrar no campo da apostasia, a lembrança do vintismo, do “Eusébio Macário”, dos barões de fresca data e dos pobres versos de Leitão da Silva (nome por que Garrett era conhecido intramuros), foi sempre morigeradora e teve o condão de nos lembrar o nosso pecado político original. Ou mortal, no fm de contas, se tivermos em conta que hoje toda a gente é democrática. Nós, lá no fundo, continuávamos a ser reaccionários.
Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, lembrou-nos sempre que a ironia era a mais mortífera das armas desses tempos e dos que haviam de vir. Era essa a razão por que podíamos ouvi-lo rir sonoramente quando calhou, num certo Verão, ler Júlio Dinis. Ele ria de Tomé da Póvoa, o honrado agricultor dos “Fidalgos da Casa Mourisca” – e do frade Januário, o personagem estomacal que representava o reaccionarismo ultramontano. Ele achava graça à literatura panfletária e conhecia de cor trechos de José Acúrcio das Neves, que comparou os revolucionários de 1820 a personagens das aventuras de Gulliver.
Esses tempos foram felizes para os Homem. Tonificados pela derrota, um bálsamo para a sua tentação permanente para a petulância, dedicaram-se à família, aos negócios, à vida académica e ao epicurismo que alegrou a vida dos celibatários da tribo, que foram um nadinha picarescos. Camilo havia de achar-lhes alguma graça, a esses Homem de outros tempos, sitiados pela modernidade, cómicos, desadaptados, com uma elegância digna das Cortes de Lamego, se elas tivessem existido.
O nosso miguelismo não é actual. É desses tempos. Só uma grande falta de sentido de oportunidade nos levou a manter o retrato do Senhor D. Miguel até hoje, sob o olhar divertido, respeitoso, irreverente, comovido e derrotado de várias gerações de Homem, inclusive dos que, hoje, votam no Bloco de Esquerda. Na próxima semana, terei de ouvir os protestos da minha sobrinha, mal o jornal chegue a Braga.
in Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007
Verdadeiramente, nunca houve ultramontanos em Ponte de Lima tirando fases da existência da Tia Benedita, quando lhe parecia que os sobrinhos e netos andavam tentados pelo demónio. Como o demónio era uma categoria moral e não uma personagem substantiva, o seu ultramontanismo era tido na conta de um pequeno delírio das nossas províncias – as que desconfiavam da República como antes tinham execrado Passos Manuel, José Estêvão e os Cabrais.
A única vantagem do ultramontanismo era, rigorosamente, taxinómina: tudo o que lhe era estranho cabia no campo do inimigo. Tamanha simplicidade era comovente e simplificadora, ainda que injusta. Se não soubéssemos da generosidade fria mas autêntica da Tia Benedita, julgaríamos que a senhora estaria predestinada a vir para a rua dar vivas à Vilafrancada – mas “o inimigo” era-lhe profundamente necessário como um tónus para os males de espírito, evitando o ressentimento. Em boa verdade, era uma das condições admitidas para a sua íntima felicidade.
A família foi pouco cartista, mesmo assim. Por conveniência, mas sem ambição, tinha – digamos – os seus espiões. À medida que os ‘revolucionários’ se transformavam em ‘reformistas’, e que os ‘reformistas’ se mudavam ‘regeneradores’ e, depois, em ‘conservadores’, não havendo já ‘radicais’, os Homem repousaram e puderam voltar a olhar, com discreta melancolia, para o retrato do Senhor D. Miguel, estacionado no casarão de Ponte de Lima.
O mundo, ordinariamente (como concluiu o meu bisavô, o último dos nossos miguelistas de raiz), gira sempre para o mesmo lado. Munidos desta certeza, nem o meu avô nem o velho Doutor Homem, meu pai, se preocuparam mais com o assunto, decretando que as velhas histórias políticas da família podiam ser, definitivamente, arrumadas – e o nosso nome reabilitado para os tempos modernos.
Era mentira. Também era tranquilizador, mas era mentira. Quando se chegava a vias de facto, ou seja, àquele momento em que se corria o risco de entrar no campo da apostasia, a lembrança do vintismo, do “Eusébio Macário”, dos barões de fresca data e dos pobres versos de Leitão da Silva (nome por que Garrett era conhecido intramuros), foi sempre morigeradora e teve o condão de nos lembrar o nosso pecado político original. Ou mortal, no fm de contas, se tivermos em conta que hoje toda a gente é democrática. Nós, lá no fundo, continuávamos a ser reaccionários.
Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, lembrou-nos sempre que a ironia era a mais mortífera das armas desses tempos e dos que haviam de vir. Era essa a razão por que podíamos ouvi-lo rir sonoramente quando calhou, num certo Verão, ler Júlio Dinis. Ele ria de Tomé da Póvoa, o honrado agricultor dos “Fidalgos da Casa Mourisca” – e do frade Januário, o personagem estomacal que representava o reaccionarismo ultramontano. Ele achava graça à literatura panfletária e conhecia de cor trechos de José Acúrcio das Neves, que comparou os revolucionários de 1820 a personagens das aventuras de Gulliver.
Esses tempos foram felizes para os Homem. Tonificados pela derrota, um bálsamo para a sua tentação permanente para a petulância, dedicaram-se à família, aos negócios, à vida académica e ao epicurismo que alegrou a vida dos celibatários da tribo, que foram um nadinha picarescos. Camilo havia de achar-lhes alguma graça, a esses Homem de outros tempos, sitiados pela modernidade, cómicos, desadaptados, com uma elegância digna das Cortes de Lamego, se elas tivessem existido.
O nosso miguelismo não é actual. É desses tempos. Só uma grande falta de sentido de oportunidade nos levou a manter o retrato do Senhor D. Miguel até hoje, sob o olhar divertido, respeitoso, irreverente, comovido e derrotado de várias gerações de Homem, inclusive dos que, hoje, votam no Bloco de Esquerda. Na próxima semana, terei de ouvir os protestos da minha sobrinha, mal o jornal chegue a Braga.
in Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007
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