sábado, julho 14, 2007

Os Cabrais e a liberdade

Não há, paredes dentro, muitas saudades da Maria da Fonte. Por mim, aprecio apenas a musiquinha. Desde a minha infância que a ouço, tocada por bandas que descem as ruas, naquela tranquilidade campestre que tolda o Verão com um toque garrido e melancólico, e que pouco têm a ver com os acontecimentos da Fonte da Arcada naquele ano de 1846. O velho Camilo mencionou que aplaudiu “as mulheres viris do Minho, até para envergonhar os homens efeminados de Lisboa”. As revoluções devoram-se a si próprias, mais do que aos seus filhos, como se sabe. O próprio escritor tirou as dúvidas várias vezes, ao longo da vida. Seja como for.

Apenas o tio Alberto, que era bibliómano, coleccionou vários livros e opúsculos sobre os pequenos pormenores da história minhota – e dedicou à Maria da Fonte um recanto nas suas estantes de São Pedro de Arcos. Ele, se não fosse o tempo roubado pelas paixões e pela gastronomia, teria gostado de ser um José Augusto Vieira reescrevendo o “Minho Pittoresco”. Mas o assunto era casual e marginal. Interessaram-no mais os bastidores da Concessão de Évora Monte (nunca lhe chamou “convenção”) e a ideia de um romance de aventuras sobre o general MacDonnell (com quem se dera o Zeferino das Lamelas, personagem da “Brasileira de Prazins”), o bravo combatente escocês das fileiras miguelistas. Felizmente, nunca o escreveu; na nossa família já havia problemas bastantes. Murmura-se nas crónicas que o general seria muito dado à genebra, tanto como às amizades com as senhoras do Minho (especialmente em Guimarães), que lhe amenizariam as saudades das Hébridas.

Se a Maria da Fonte pouca importância teve na genealogia política da família, já os Cabrais (António Bernardo e José Bernardo) eram olhados como exemplo “da tirania esclarecida” – e de que se devia desconfiar, ontem como hoje. Burocratas exímios na arrecadação “do imposto”, moralistas do Estado que actuavam em nome da pátria, fiéis dessa nova religião laica que era “o progresso”, os cabralistas teriam feito do país um modelo de comportamento e de qualidades políticas. Como ordinariamente acontece, a bondade das ideias raramente tem correspondência no carácter malévolo e imperfeito das sociedades. Foi contra esse espírito que a revolta da Maria da Fonte se ergueu em alicerces sem dúvida penosos e controversos, dos quais o enterro dos mortos nas igrejas era apenas um pormenor incendiário.

O que estava em causa era a liberdade – a “santa liberdade”, o espectro amaldiçoado pelos homens perfeitos que bem desejariam que todos os outros adoptassem a sua própria perfeição, porque isso seria melhor para as suas vidas. E se não a adoptam voluntariamente, institui-se uma tirania em nome do progresso. Simplesmente, como aconteceu várias vezes, o Minho não estava, nesses anos de oitocentos, disposto a sacrificar nem a perder a sua liberdade. A parte mais substancial dessa revolta que reuniu herdeiros de liberais e de miguelistas fazia-se em nome dessa minudência que desagrada profundamente aos governos.

A verdade é que vivi bastante. Deixei de acreditar em verdades absolutas e na possibilidade de regeneração dos mortais – que prefiro assim, imperfeitos, jocosos, renitentes e ingerindo medicamentos contra o colesterol. Aprendi, com os anos e com alguns erros, que a possibilidade de ter opinião se deve a dois factores tremendos: à vaidade, nuns casos; à natureza do género humano, nos restantes. Poderia mencionar a dignidade e o direito, em geral, como outros factores. Mas não interessam tanto. Os primeiros bastam, porque são simples e compreensíveis.

A Tia Benedita, o génio ultramontano da família, comparava os Cabrais à sanha demagoga do dr. Afonso Costa. Ela conhecia, à sua maneira, o elemento humano que se encaminhava para a corrupção e para a impostura.Os Cabrais estão em todo o lado, afinal: esclarecidos, cultos, abrindo estradas e dirigindo o progresso – mas temendo muito a liberdade e as ideias contrárias. Não porque, realmente, tenham medo de ambas; mas porque a liberdade e as ideias contrárias são correntemente um empecilho que desvaloriza a sua vontade de mandar.

in Revista Notícias Sábado – 14 Julho 2007