O tio Henrique e o oboé
Na família raramente se apreciava, creio que por preguiça, o radicalismo da Tia Benedita. Havia, naquela disposição reaccionária, comprometida com os terços, as novenas, o temor de Deus, e o desprezo pelos republicanos, algum sentido de humor para quem assistia ao espectáculo. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que havia alguma sorte pelo facto de a família contar com poucos militares na sua árvore genealógica; ele temia que, no passado, alguém pudesse ter incarnado o espírito beligerante da matriarca.
Os únicos militares da família, tirando os voluntários que participaram nas guerras civis, era inofensivos: o tio Henrique de Sousa Homem era oficial do exército mas limitou-se ao ramo da engenharia, tendo desenhado algumas pontes e estradas que estão recenseadas no álbum das pequenas glórias familiares, discretas e bem guardadas; um primo de Ponte de Lima, que prestava serviço na Marinha, passou à reserva depois da Noite Sangrenta, por não querer ver o seu nome manchado por um bando de assassinos que, por motivos ainda hoje obscuros, espalhou a morte na Lisboa republicana da época. O meu avô, que tinha privado com António Granjo (um dos supliciados) quando o político passava alguns dias no Porto, a caminho de Trás-os-Montes, achou o gesto muito decente embora inútil – e até complicado, uma vez que foi preciso arranjar-lhe ocupação.
O tio Henrique era um homem medianamente culto; escreveu um ensaio sobre aspectos da arquitectura militar portuense, era um numismata, acreditava nas imensas qualidades gerais da homeopatia, sabia grego e música – e teve a fantástica ideia (de que desistiu, para felicidade geral) de compor uma obra sinfónica para exaltar não sei que virtudes do patriotismo.
Naquele tempo em que não havia televisão e em que raramente se ouvia rádio, era necessário preencher o silêncio. Além disso, saber música, pintar, escrever, interessar-se por uma ciência ou por qualquer conhecimento obtuso e inútil, fazia parte da condição de se ser um cavalheiro. Ao contrário de hoje, não se era um cavalheiro por se parecer um cavalheiro ou por se assemelhar a um, mas porque se usavam os privilégios de nascimento, de educação ou do destino (e até do esforço, do trabalho e do mérito) para melhorar a vida dos mais próximos. Nos “mais próximos” começava a vida em sociedade.
Os cavalheiros da época mandavam construir fontanários e davam dinheiro para escolas, além de se interessarem pelas coisas da sua terra. Durante muito tempo ridicularizou-se esse hábito de oferecer fontanários às aldeias mais remotas, o que se deve à ignorância dos modernos – num mundo onde a água canalizada era um luxo, o fontanário constituía um bem público inestimável e um objecto de orgulho diante da penúria rural, tal como as escolas construídas pelos beneméritos que não esqueciam as dificuldades de antanho. Simples brasileiros de torna-viagem, além de provincianos que se tornaram industriais ou apenas homens ricos do Minho, deixaram alguns desses testemunhos de compreenderem que tinham de agradecer aos “mais próximos” a ventura do seu destino. A cultura – uma biblioteca, uma escola, um fontanário, uma banda de música – era um luxo a que poderiam dedicar-se depois de uma vida de sacrifício ou de enriquecimento. Ser rico tinha, pois, um custo que não devia malbaratar-se ou desvalorizar-se.
A Tia Benedita desconfiava dessa bondade de alguns ricos de província. Ela acreditava, como o seu avô e o seu pai, que essa generosidade se limitava a pagar o baronato (que já não existia) ou o favor do regime. O velho Doutor Homem, meu pai, compreendia a dúvida mas acreditava numa certa – e muito limitada – bondade da espécie humana. Ao contrário do dr. Salazar, que decidiu que o destino de Portugal era ser pobre, humilde e melancólico, ele achava que o luxo da cultura era uma afronta à mediocridade e à claustrofobia. Para convencer o tio Henrique a desistir da sua obra sinfónica, lembrou-lhe o dever de contribuir para que os seus conterrâneos aprendessem música – talvez depois lhe compusessem uma serenata. Os termos não são estes mas serviram para o essencial: o coronel da arma de engenharia numa mais tocou oboé.
in Revista Notícias Sábado – 19 Maio 2007
Os únicos militares da família, tirando os voluntários que participaram nas guerras civis, era inofensivos: o tio Henrique de Sousa Homem era oficial do exército mas limitou-se ao ramo da engenharia, tendo desenhado algumas pontes e estradas que estão recenseadas no álbum das pequenas glórias familiares, discretas e bem guardadas; um primo de Ponte de Lima, que prestava serviço na Marinha, passou à reserva depois da Noite Sangrenta, por não querer ver o seu nome manchado por um bando de assassinos que, por motivos ainda hoje obscuros, espalhou a morte na Lisboa republicana da época. O meu avô, que tinha privado com António Granjo (um dos supliciados) quando o político passava alguns dias no Porto, a caminho de Trás-os-Montes, achou o gesto muito decente embora inútil – e até complicado, uma vez que foi preciso arranjar-lhe ocupação.
O tio Henrique era um homem medianamente culto; escreveu um ensaio sobre aspectos da arquitectura militar portuense, era um numismata, acreditava nas imensas qualidades gerais da homeopatia, sabia grego e música – e teve a fantástica ideia (de que desistiu, para felicidade geral) de compor uma obra sinfónica para exaltar não sei que virtudes do patriotismo.
Naquele tempo em que não havia televisão e em que raramente se ouvia rádio, era necessário preencher o silêncio. Além disso, saber música, pintar, escrever, interessar-se por uma ciência ou por qualquer conhecimento obtuso e inútil, fazia parte da condição de se ser um cavalheiro. Ao contrário de hoje, não se era um cavalheiro por se parecer um cavalheiro ou por se assemelhar a um, mas porque se usavam os privilégios de nascimento, de educação ou do destino (e até do esforço, do trabalho e do mérito) para melhorar a vida dos mais próximos. Nos “mais próximos” começava a vida em sociedade.
Os cavalheiros da época mandavam construir fontanários e davam dinheiro para escolas, além de se interessarem pelas coisas da sua terra. Durante muito tempo ridicularizou-se esse hábito de oferecer fontanários às aldeias mais remotas, o que se deve à ignorância dos modernos – num mundo onde a água canalizada era um luxo, o fontanário constituía um bem público inestimável e um objecto de orgulho diante da penúria rural, tal como as escolas construídas pelos beneméritos que não esqueciam as dificuldades de antanho. Simples brasileiros de torna-viagem, além de provincianos que se tornaram industriais ou apenas homens ricos do Minho, deixaram alguns desses testemunhos de compreenderem que tinham de agradecer aos “mais próximos” a ventura do seu destino. A cultura – uma biblioteca, uma escola, um fontanário, uma banda de música – era um luxo a que poderiam dedicar-se depois de uma vida de sacrifício ou de enriquecimento. Ser rico tinha, pois, um custo que não devia malbaratar-se ou desvalorizar-se.
A Tia Benedita desconfiava dessa bondade de alguns ricos de província. Ela acreditava, como o seu avô e o seu pai, que essa generosidade se limitava a pagar o baronato (que já não existia) ou o favor do regime. O velho Doutor Homem, meu pai, compreendia a dúvida mas acreditava numa certa – e muito limitada – bondade da espécie humana. Ao contrário do dr. Salazar, que decidiu que o destino de Portugal era ser pobre, humilde e melancólico, ele achava que o luxo da cultura era uma afronta à mediocridade e à claustrofobia. Para convencer o tio Henrique a desistir da sua obra sinfónica, lembrou-lhe o dever de contribuir para que os seus conterrâneos aprendessem música – talvez depois lhe compusessem uma serenata. Os termos não são estes mas serviram para o essencial: o coronel da arma de engenharia numa mais tocou oboé.
in Revista Notícias Sábado – 19 Maio 2007
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