A mulher de trinta anos
Eu lembro-me mal da mulher de trinta anos. Foi há muito tempo. Mesmo o retrato de Júlia d’Aiglemont, a jovem marquesa que foi personagem de Balzac, está desfocado na minha memória, e até reprimido – o livro, “A Mulher de Trinta Anos”, é ligeiramente medíocre, mas diz quase tudo a quem se contenta com pouco. Há, inevitavelmente, a distância da época e da fisiologia: a mulher de trinta anos de Balzac, segundo entendo, vive hoje até aos cinquenta sem perder a sua marca romanesca e o fascínio devasso que a minha geração lhe emprestava, ainda que nunca se tivesse lido o livro. Adultério, maus casamentos, maridos traídos, sofrimentos verdadeiros – a panorâmica é demasiado vulgar e, convenhamos, superlativamente francesa ou apenas provocada pelo bonapartismo.
Depois de dobrar a meta dos oitenta, um velho permite-se todo o género de imoralidade, que lhe é consentida porque – justamente – não é vista senão como distracção. Elas tiveram sempre má fama, as “balzaquianas”, arrastando consigo acusações poucas vezes provadas de adultério e outras torpezas. A história de Balzac havia de ser melhor tratada por Flaubert (Emma Bovary respira bravamente, e sofre muito mais), que a contagiou com a ironia que magoava os seus personagens, se não contarmos com a acidez de outros. Percebo pouco de literatura mas tenho memória: as paixões de juventude são irrisórias e contentam-se com um período de esquecimento, de euforia e de glória. Só mais tarde valorizamos a aprendizagem ou a desgraça que maculou a juventude.
Dona Ester, minha mãe, que era severa e anti-romântica, livrou-me desse sofrimento; só depois dos trinta anos compreendi que tinha sido salvo do Purgatório. Descobri, ao longo dos anos, mais de meio século, que a idade é um peso de que nos livramos à medida que atravessamos a tortura dos calendários.
A minha sobrinha acha que, na crónica da semana passada, me referi a ela como “balzaquiana”, ao mencionar a sua qualidade de “mulher de trinta anos”. De certa maneira, sim. Há, nas mulheres maduras e da chamada “meia-idade”, todo o género de tentações. Os “atractivos irresistíveis” de que falava Balzac têm menos a ver com a sua sexualidade do que com o fascínio pela idade madura e pelos sulcos deixados pelo pecado, o que não é exactamente a mesma coisa. Tentar explicar isto a uma mulher “de trinta anos” (além do pudor, também a delicadeza me impede de mencionar a idade) não é fácil; digamos que se trata de explicar a serenidade de Montaigne durante um baile de fox-trot.
Ela pensa, na sua generosidade, que me interesso pelo assunto quando apenas me limito a imaginar. Os canalhas, como Balzac e como Eça, têm razão sem querer. Também eles, à sua maneira, se limitam a imaginar como seria um mundo em que triunfassem sobre Júlia d’Aiglemont, sobre Emma Bovary ou, muito prosaicamente, sobre a senhora condessa de Gouvarinho. Mas o mundo mudou bastante e de maneira radical, o que me leva de novo ao livro de Balzac. Para ele, a mulher de trinta anos (modelo, na época, de mulher madura) seria muito conveniente para os ardores de um homem substancialmente mais novo; ora, justamente, a mulher madura é um ideal para os homens de todas as idades.
Eu não devia escrever sobre estes assuntos, arriscando-me a que, durante semanas, a família olhe para o velho Matusalém de Moledo como um fenómeno que conseguiu escapar ao filtro da idade e da decência. O velho Doutor Homem, meu pai, tinha fama de admirar – à distância – a imoralidade do mundo. Ele admirava alguns pantomineiros e personagens de histórias burlescas. Creio que, até nisso, praticava uma pequena vingança contra o dr. Salazar, a quem acusava de quase todos os males que magoavam o país, e que, certamente, se sentiria fragilizado diante do desplante e da infinita sabedoria de uma senhora balzaquiana.
Nos seus momentos radicais, a minha sobrinha Maria Luísa (que vota esporadicamente – porque nem sempre vota – no Bloco de Esquerda) lembra-me que o dr. Salazar também era um celibatário, como eu. Nessas alturas, limito-me a sorrir e a recordar. Ela julga, então, que noutras épocas fui um fauno percorrendo os bosques.
in Revista Notícias Sábado – 2 Junho 2007
Depois de dobrar a meta dos oitenta, um velho permite-se todo o género de imoralidade, que lhe é consentida porque – justamente – não é vista senão como distracção. Elas tiveram sempre má fama, as “balzaquianas”, arrastando consigo acusações poucas vezes provadas de adultério e outras torpezas. A história de Balzac havia de ser melhor tratada por Flaubert (Emma Bovary respira bravamente, e sofre muito mais), que a contagiou com a ironia que magoava os seus personagens, se não contarmos com a acidez de outros. Percebo pouco de literatura mas tenho memória: as paixões de juventude são irrisórias e contentam-se com um período de esquecimento, de euforia e de glória. Só mais tarde valorizamos a aprendizagem ou a desgraça que maculou a juventude.
Dona Ester, minha mãe, que era severa e anti-romântica, livrou-me desse sofrimento; só depois dos trinta anos compreendi que tinha sido salvo do Purgatório. Descobri, ao longo dos anos, mais de meio século, que a idade é um peso de que nos livramos à medida que atravessamos a tortura dos calendários.
A minha sobrinha acha que, na crónica da semana passada, me referi a ela como “balzaquiana”, ao mencionar a sua qualidade de “mulher de trinta anos”. De certa maneira, sim. Há, nas mulheres maduras e da chamada “meia-idade”, todo o género de tentações. Os “atractivos irresistíveis” de que falava Balzac têm menos a ver com a sua sexualidade do que com o fascínio pela idade madura e pelos sulcos deixados pelo pecado, o que não é exactamente a mesma coisa. Tentar explicar isto a uma mulher “de trinta anos” (além do pudor, também a delicadeza me impede de mencionar a idade) não é fácil; digamos que se trata de explicar a serenidade de Montaigne durante um baile de fox-trot.
Ela pensa, na sua generosidade, que me interesso pelo assunto quando apenas me limito a imaginar. Os canalhas, como Balzac e como Eça, têm razão sem querer. Também eles, à sua maneira, se limitam a imaginar como seria um mundo em que triunfassem sobre Júlia d’Aiglemont, sobre Emma Bovary ou, muito prosaicamente, sobre a senhora condessa de Gouvarinho. Mas o mundo mudou bastante e de maneira radical, o que me leva de novo ao livro de Balzac. Para ele, a mulher de trinta anos (modelo, na época, de mulher madura) seria muito conveniente para os ardores de um homem substancialmente mais novo; ora, justamente, a mulher madura é um ideal para os homens de todas as idades.
Eu não devia escrever sobre estes assuntos, arriscando-me a que, durante semanas, a família olhe para o velho Matusalém de Moledo como um fenómeno que conseguiu escapar ao filtro da idade e da decência. O velho Doutor Homem, meu pai, tinha fama de admirar – à distância – a imoralidade do mundo. Ele admirava alguns pantomineiros e personagens de histórias burlescas. Creio que, até nisso, praticava uma pequena vingança contra o dr. Salazar, a quem acusava de quase todos os males que magoavam o país, e que, certamente, se sentiria fragilizado diante do desplante e da infinita sabedoria de uma senhora balzaquiana.
Nos seus momentos radicais, a minha sobrinha Maria Luísa (que vota esporadicamente – porque nem sempre vota – no Bloco de Esquerda) lembra-me que o dr. Salazar também era um celibatário, como eu. Nessas alturas, limito-me a sorrir e a recordar. Ela julga, então, que noutras épocas fui um fauno percorrendo os bosques.
in Revista Notícias Sábado – 2 Junho 2007
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