Esperar pouco da vida
Esperar pouco da vida. Este foi um dos lemas fundamentais do velho Doutor Homem, meu pai. Não precisava de estar afixado nas paredes da casa de família, porque ele o vivia naturalmente como uma condição do seu modo de ser.
Por esta altura do ano, em 1945, chegavam ao Porto – ao Porto burguês, ex-romântico, pacífico e familiar – as primeiras notícias da vitória quase definitiva dos Aliados no campo de batalha. Durante semanas, o velho Doutor Homem, meu pai, esperou que o regime recuperasse o bom-senso para que terminasse o modelo do paletó presidencial, inspirado naquilo que em casa – às escondidas – se dizia ser a Saville Road de Santa Comba Dão, uma espécie de alfaiataria nacional. Infelizmente, os jornais noticiaram que o país estava de luto durante três dias em honra do facínora alemão, o golpe fatal que confirmaria todo o cepticismo da família – mas o meu pai esperava pouco da vida. Ao recordar episódios soltos e ao acaso de entre as recordações familiares, encontro sempre exemplos dessa divisa que, com os tempos, se tornou uma espécie de dogma.
A minha sobrinha admirou sempre esta história de surda indignação do seu avô, embora ache obtuso que o herdeiro da Velha Ordem, o contra-revolucionário e guardião da tradição miguelista da família, se tenha tão cedo desentendido com o regime de 1926. A razão, como em tempos expliquei, tinha a ver com o desprezo que o velho Doutor Homem, meu pai, nutria pela censura, pela figura do doutor Salazar e pelo provincianismo em geral. Nunca se deixou impressionar pelo messianismo e notava no lente de Coimbra um desprezo geral pela espécie humana e seus pecados. O que o desgostava nessa “virtude do regime”, identificada no rosto do presidente do Conselho, era a sua intenção de impô-la a todos os portugueses, o que ele entendia ser uma armadilha – privado da turbulência e do espírito de aventura, o País adormeceria tristemente sob as latadas, envergonhado e sorumbático. Porém, ao contrário do espírito das gerações modernas e do entusiasmo contemporâneo da minha sobrinha, ele sabia que as revoluções do século XX, longe de serem feitas em nome da liberdade, apenas contribuíram para aumentar as privações da liberdade, substituindo tiranias por tiranias e erguendo arame farpado onde antes havia campo aberto. E também sabia que a privação da liberdade em nome da garantia do pão era um exercício de chantagem que aprisiona os que lhe cedem.
Cansavam-no bastante os virtuosos, os que tinham remédios para a pátria e os pálidos de feitio. Esse seu receio dos “Eusebiozinhos” (em recordação do Eça mais paródico, o de “Os Maias”) acentuou o seu lado céptico, longe de morigerar a ironia ou a sua permanente desconfiança. Triste com o País, recusava-se a falar com ele. Achava-o pequeno, medíocre e, ao mesmo tempo, o seu único País. Até ao fim da vida, manteve longe de si os virtuosos e manteve-se a si mesmo afastado da ribalta. Dedicado à família na proporção inversa da sua moderada misantropia, ensinou-me quase tudo: o Direito, que pratiquei sob a sua protecção; a literatura, que conheci na sua biblioteca; a contemplação do mundo, que aprendi em longos passeios pelas clareiras do Minho; o prazer da música, que conheci nos preguiçosos verões de Ponte de Lima, naquele casarão cuja alma pertencia ao Antigo Regime; a esperar pouco da vida, súmula de todas as máximas possíveis, resumo da uma existência consagrada a não incomodar os outros com as nossas verdades ou as nossas crenças.
Com esta Primavera de Moledo ocupada em sobreviver às indecisões do clima, recordo a sua figura tranquila. Botânico amador que sou, não lhe devo o amor às árvores e às plantas (ele mandava, às escondidas, arrancar os gladíolos, que em determinada altura eram a flor da moda); trata-se de descoberta minha. Os gerânios da temporada advertem-me sobre a fragilidade das coisas; de todas elas, penso na felicidade ou na alegria. Só o tempo que passou me parece seguro.
in Revista Notícias Sábado – 12 Maio 2007
Por esta altura do ano, em 1945, chegavam ao Porto – ao Porto burguês, ex-romântico, pacífico e familiar – as primeiras notícias da vitória quase definitiva dos Aliados no campo de batalha. Durante semanas, o velho Doutor Homem, meu pai, esperou que o regime recuperasse o bom-senso para que terminasse o modelo do paletó presidencial, inspirado naquilo que em casa – às escondidas – se dizia ser a Saville Road de Santa Comba Dão, uma espécie de alfaiataria nacional. Infelizmente, os jornais noticiaram que o país estava de luto durante três dias em honra do facínora alemão, o golpe fatal que confirmaria todo o cepticismo da família – mas o meu pai esperava pouco da vida. Ao recordar episódios soltos e ao acaso de entre as recordações familiares, encontro sempre exemplos dessa divisa que, com os tempos, se tornou uma espécie de dogma.
A minha sobrinha admirou sempre esta história de surda indignação do seu avô, embora ache obtuso que o herdeiro da Velha Ordem, o contra-revolucionário e guardião da tradição miguelista da família, se tenha tão cedo desentendido com o regime de 1926. A razão, como em tempos expliquei, tinha a ver com o desprezo que o velho Doutor Homem, meu pai, nutria pela censura, pela figura do doutor Salazar e pelo provincianismo em geral. Nunca se deixou impressionar pelo messianismo e notava no lente de Coimbra um desprezo geral pela espécie humana e seus pecados. O que o desgostava nessa “virtude do regime”, identificada no rosto do presidente do Conselho, era a sua intenção de impô-la a todos os portugueses, o que ele entendia ser uma armadilha – privado da turbulência e do espírito de aventura, o País adormeceria tristemente sob as latadas, envergonhado e sorumbático. Porém, ao contrário do espírito das gerações modernas e do entusiasmo contemporâneo da minha sobrinha, ele sabia que as revoluções do século XX, longe de serem feitas em nome da liberdade, apenas contribuíram para aumentar as privações da liberdade, substituindo tiranias por tiranias e erguendo arame farpado onde antes havia campo aberto. E também sabia que a privação da liberdade em nome da garantia do pão era um exercício de chantagem que aprisiona os que lhe cedem.
Cansavam-no bastante os virtuosos, os que tinham remédios para a pátria e os pálidos de feitio. Esse seu receio dos “Eusebiozinhos” (em recordação do Eça mais paródico, o de “Os Maias”) acentuou o seu lado céptico, longe de morigerar a ironia ou a sua permanente desconfiança. Triste com o País, recusava-se a falar com ele. Achava-o pequeno, medíocre e, ao mesmo tempo, o seu único País. Até ao fim da vida, manteve longe de si os virtuosos e manteve-se a si mesmo afastado da ribalta. Dedicado à família na proporção inversa da sua moderada misantropia, ensinou-me quase tudo: o Direito, que pratiquei sob a sua protecção; a literatura, que conheci na sua biblioteca; a contemplação do mundo, que aprendi em longos passeios pelas clareiras do Minho; o prazer da música, que conheci nos preguiçosos verões de Ponte de Lima, naquele casarão cuja alma pertencia ao Antigo Regime; a esperar pouco da vida, súmula de todas as máximas possíveis, resumo da uma existência consagrada a não incomodar os outros com as nossas verdades ou as nossas crenças.
Com esta Primavera de Moledo ocupada em sobreviver às indecisões do clima, recordo a sua figura tranquila. Botânico amador que sou, não lhe devo o amor às árvores e às plantas (ele mandava, às escondidas, arrancar os gladíolos, que em determinada altura eram a flor da moda); trata-se de descoberta minha. Os gerânios da temporada advertem-me sobre a fragilidade das coisas; de todas elas, penso na felicidade ou na alegria. Só o tempo que passou me parece seguro.
in Revista Notícias Sábado – 12 Maio 2007
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