Heróis sem interesse
A esquerda, a avaliar pela curiosidade da minha sobrinha em relação a estas crónicas, sente mais ternura pelas velharias do século XIX do que pelos democratas baptizados depois dos anos cinquenta. Compreende-se o desconchavo, e deve haver uma razão para isso: somos inofensivos, viemos de outro tempo, do além-túmulo, onde já não há munições para o combate e onde nos livrámos de pedreiros-livres e de salazaristas cheios de reumatismo.
Já contei ao leitor que coube à minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, levar o retrato do senhor Dom Miguel a retocar e reparar em Braga. O velho Doutor Homem, meu pai, que sobreviveu ainda largos meses à democracia, nunca deixou que o retirássemos da parede do fundo do corredor na velha casa de Ponte de Lima, com o argumento de que ninguém reconheceria o príncipe (que deixara de ser ameaçador há muito) e de que a Tia Benedita já cá não estava para novenas em sua memória.
Restos de honorabilidade, é o que me parece. A minha sobrinha escutou na sua adolescência as várias histórias de heróis que ombreavam com o Remexido, e acha que o algarvio José Joaquim de Sousa Reis (que seria fuzilado à traição pelos liberais da ordem nova) merecia uma telenovela, como os brasileiros do sertão. Os tempos não vão para isso: os heróis de hoje já não são salteadores de estrada nem lutam contra os ventos da História.
Que no Brasil possam fazer romances sobre António Conselheiro, uma espécie de herói miguelista de Canudos que indispôs os republicanos do hemisfério Sul (e que produziu “Os Sertões” de Euclydes da Cunha) – é uma coisa. Mas Portugal é um território diminuto para heróis discutíveis, que devem ser economizados. Gostamos muito de ter certezas absolutas, um mal que erigiu muitas forcas de Norte a Sul. Camilo, que conheceu José do Telhado e escreveu sobre ele, conheceu alguns desses desvalidos; na época em que era coleccionador de curiosidades históricas, li também o livro de Rafael Augusto de Sousa sobre o salteador que foi degredado para Angola, além de umas memórias sobre a sua vida africana. Mas a minha sobrinha não sabia que também havia bandoleiros românticos dentro das quatro paredes da pátria. Para ela, foras-da-lei como o José do Telhado, são um emblema dos derrotados. Há um halo de vitória no desembarque dos liberais na Praia dos Ladrões (só depois transformada em Mindelo) – mas a matéria romântica, como insisti na crónica anterior, está ligada ao mundo dos derrotados. É isso que nos salva, a nós, os Homem de outras eras, que não discutimos a construção do novo aeroporto, porque – simplesmente –não nos será necessário.
Convivo com o passado sem remorso. Convivo com a História sem lembrar os pecados de outrora. Há uma parte do mundo que recordo com saudade, mas sei que nada disso regressa. Historiador da família, assim me quiseram por vezes, mas falhei: a minha família é um emaranhado de recordações desencontradas. Há ainda, pelos cantos, primos que não aceitam a Concessão de Évoramonte e não passam por Cascais (onde o príncipe teria embarcado para o exílio) sem murmurar contra o usurpador. São heróis sem bandeira, silenciosos e ignorados. Meia-dúzia de memórias sem importância são o que me resta da minha consciência política.
Há muitos anos, quando regressei do Brasil, vi que esse mundo tinha terminado. Eu tinha passado quase quatro meses no Rio de Janeiro a conselho e determinação de Dona Ester, minha mãe. Ela tinha convencido o velho Doutor Homem, meu pai, a enviar-me à Guanabara para curar um desgosto de amor. Um mundo de beleza e de novidade tinha atraiçoado todos os compromissos da minha memória. Era um mundo que me tinha tornado cosmopolita em poucas semanas, obrigando-me a reconhecer que o meu pobre Minho não era um bastião contra a infelicidade.
Regressei mudado mas conformado. Eu sabia que outro mundo existia para lá da barra da Foz (já o soubera antes, quando o velho Doutor Homem nos mostrara a Europa do seu tempo), mas conhecia as minhas raízes. Estava agarrado a elas como uma mancha de musgo que não abandona o tronco do carvalho no meio da floresta. Eu era uma prova de que o musgo e o carvalho tinham existido.
in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007
Já contei ao leitor que coube à minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, levar o retrato do senhor Dom Miguel a retocar e reparar em Braga. O velho Doutor Homem, meu pai, que sobreviveu ainda largos meses à democracia, nunca deixou que o retirássemos da parede do fundo do corredor na velha casa de Ponte de Lima, com o argumento de que ninguém reconheceria o príncipe (que deixara de ser ameaçador há muito) e de que a Tia Benedita já cá não estava para novenas em sua memória.
Restos de honorabilidade, é o que me parece. A minha sobrinha escutou na sua adolescência as várias histórias de heróis que ombreavam com o Remexido, e acha que o algarvio José Joaquim de Sousa Reis (que seria fuzilado à traição pelos liberais da ordem nova) merecia uma telenovela, como os brasileiros do sertão. Os tempos não vão para isso: os heróis de hoje já não são salteadores de estrada nem lutam contra os ventos da História.
Que no Brasil possam fazer romances sobre António Conselheiro, uma espécie de herói miguelista de Canudos que indispôs os republicanos do hemisfério Sul (e que produziu “Os Sertões” de Euclydes da Cunha) – é uma coisa. Mas Portugal é um território diminuto para heróis discutíveis, que devem ser economizados. Gostamos muito de ter certezas absolutas, um mal que erigiu muitas forcas de Norte a Sul. Camilo, que conheceu José do Telhado e escreveu sobre ele, conheceu alguns desses desvalidos; na época em que era coleccionador de curiosidades históricas, li também o livro de Rafael Augusto de Sousa sobre o salteador que foi degredado para Angola, além de umas memórias sobre a sua vida africana. Mas a minha sobrinha não sabia que também havia bandoleiros românticos dentro das quatro paredes da pátria. Para ela, foras-da-lei como o José do Telhado, são um emblema dos derrotados. Há um halo de vitória no desembarque dos liberais na Praia dos Ladrões (só depois transformada em Mindelo) – mas a matéria romântica, como insisti na crónica anterior, está ligada ao mundo dos derrotados. É isso que nos salva, a nós, os Homem de outras eras, que não discutimos a construção do novo aeroporto, porque – simplesmente –não nos será necessário.
Convivo com o passado sem remorso. Convivo com a História sem lembrar os pecados de outrora. Há uma parte do mundo que recordo com saudade, mas sei que nada disso regressa. Historiador da família, assim me quiseram por vezes, mas falhei: a minha família é um emaranhado de recordações desencontradas. Há ainda, pelos cantos, primos que não aceitam a Concessão de Évoramonte e não passam por Cascais (onde o príncipe teria embarcado para o exílio) sem murmurar contra o usurpador. São heróis sem bandeira, silenciosos e ignorados. Meia-dúzia de memórias sem importância são o que me resta da minha consciência política.
Há muitos anos, quando regressei do Brasil, vi que esse mundo tinha terminado. Eu tinha passado quase quatro meses no Rio de Janeiro a conselho e determinação de Dona Ester, minha mãe. Ela tinha convencido o velho Doutor Homem, meu pai, a enviar-me à Guanabara para curar um desgosto de amor. Um mundo de beleza e de novidade tinha atraiçoado todos os compromissos da minha memória. Era um mundo que me tinha tornado cosmopolita em poucas semanas, obrigando-me a reconhecer que o meu pobre Minho não era um bastião contra a infelicidade.
Regressei mudado mas conformado. Eu sabia que outro mundo existia para lá da barra da Foz (já o soubera antes, quando o velho Doutor Homem nos mostrara a Europa do seu tempo), mas conhecia as minhas raízes. Estava agarrado a elas como uma mancha de musgo que não abandona o tronco do carvalho no meio da floresta. Eu era uma prova de que o musgo e o carvalho tinham existido.
in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007
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