Eu, pedagogo
A adolescência do meu tempo, e na minha família, era atrevida como a de hoje, mas menos infeliz. Dona Ester, minha mãe, não deixava. A infância tinha sido percorrida por heróis que tinham conquistado a felicidade sempre com um sorriso. Os heróis dos meus sobrinhos-bisnetos, ao que vejo pelo ruído das televisões ao domingo de manhã, quando entram naquele coma regular uma ou duas horas antes de almoço, ouvem todo o género de sons e as imagens não são melhores. Não conheço um único dos heróis de hoje e suponho, até, que não existem. Como me informaram naqueles longínquos anos de setenta, o fim dos heróis era uma das conquistas da democracia – iríamos assistir à socialização das histórias para adormecer, à libertação dos erros ortográficos (a boa ortografia era uma desinência das classes privilegiadas) e ao fim das injustiças sociais. Não me surpreendi, mas reconheço que o meu tempo tinha heróis das histórias de infância e adolescência, havia erros ortográficos e tínhamos graves injustiças sociais. Passados trinta anos, as injustiças sociais e os erros ortográficos mantêm-se mas os heróis das histórias infantis foram definitivamente abolidos; informei-me bastante sobre isso, perguntando às mães e avós da família. O assunto não me afecta pessoalmente, mas reenvia-me aos livros pios do meu passado, cheios de exemplos morais que atormentavam a nossa natural queda para a maldade e de personagens que se esforçavam para não serem banidos na altura da distribuição de recompensas.
O leitor sabe que não sou a pessoa mais indicada para fornecer exemplos de moralidade e de alto “desempenho social”, como agora se diz. Periodicamente sou assaltado por tempestades reaccionárias que, no entanto, não me indispõem gravemente; limito-me a considerar que o mundo não me pertence e que os abismos de hoje são, de facto, piores do que os de ontem. Nisto, divirjo bastante dos meus irmãos e irmãs, ou da maior parte deles, que são optimistas por natureza e acham que um velho de oitenta anos se deveria recolher a horas, tratar o reumatismo e dar passeios ao longo dos pinhais para respirar o cheiro das resinas. Eles acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão japonesas não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário, como os tempos mudaram, eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia. O que nós não sabíamos no nosso tempo, sabem as crianças de hoje antes da emancipação civil.
Tenho para mim que não se trata de uma espantosa vantagem. Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e de ‘dandys’, o meu avô acreditava – como os burgueses do Porto e os cartistas que tinham escapado à sanha radical contemporânea dos seus pais e avós – que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade, por exemplo) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, simplesmente não acreditava na felicidade, mas tinha alguma consideração por quem se esforçava.
A minha sobrinha Maria Luísa, que vai contribui para alimentar a minha inútil vaidade, explica-me que as crianças de dez anos já sabem manejar máquinas de calcular e visitam regularmente a internet para “navegar”, expressão que me comoveu bastante. Os navegadores do meu tempo eram os intrépidos heróis que tinham dobrado o Bojador, estabelecido comércio com os sarracenos ou os chineses e enfrentado o medo do mar. Hoje navega-se em casa porque o mundo está cheio de doenças preocupantes, que não se resumem ao tétano ou à escarlatina. Sentados diante do computador, os meus sobrinhos-bisnetos sabem mais sobre as avarias do mundo do que eu alguma vez soube acerca das minudências do direito bancário ou das contracurvas da serra de Arga, que conheci durante toda a vida. No meu tempo, a asma era uma tragédia. Hoje, como depreendo, é a falta de “rede” para a internet.
in Revista Notícias Sábado – 9 Junho 2007
O leitor sabe que não sou a pessoa mais indicada para fornecer exemplos de moralidade e de alto “desempenho social”, como agora se diz. Periodicamente sou assaltado por tempestades reaccionárias que, no entanto, não me indispõem gravemente; limito-me a considerar que o mundo não me pertence e que os abismos de hoje são, de facto, piores do que os de ontem. Nisto, divirjo bastante dos meus irmãos e irmãs, ou da maior parte deles, que são optimistas por natureza e acham que um velho de oitenta anos se deveria recolher a horas, tratar o reumatismo e dar passeios ao longo dos pinhais para respirar o cheiro das resinas. Eles acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão japonesas não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário, como os tempos mudaram, eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia. O que nós não sabíamos no nosso tempo, sabem as crianças de hoje antes da emancipação civil.
Tenho para mim que não se trata de uma espantosa vantagem. Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e de ‘dandys’, o meu avô acreditava – como os burgueses do Porto e os cartistas que tinham escapado à sanha radical contemporânea dos seus pais e avós – que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade, por exemplo) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, simplesmente não acreditava na felicidade, mas tinha alguma consideração por quem se esforçava.
A minha sobrinha Maria Luísa, que vai contribui para alimentar a minha inútil vaidade, explica-me que as crianças de dez anos já sabem manejar máquinas de calcular e visitam regularmente a internet para “navegar”, expressão que me comoveu bastante. Os navegadores do meu tempo eram os intrépidos heróis que tinham dobrado o Bojador, estabelecido comércio com os sarracenos ou os chineses e enfrentado o medo do mar. Hoje navega-se em casa porque o mundo está cheio de doenças preocupantes, que não se resumem ao tétano ou à escarlatina. Sentados diante do computador, os meus sobrinhos-bisnetos sabem mais sobre as avarias do mundo do que eu alguma vez soube acerca das minudências do direito bancário ou das contracurvas da serra de Arga, que conheci durante toda a vida. No meu tempo, a asma era uma tragédia. Hoje, como depreendo, é a falta de “rede” para a internet.
in Revista Notícias Sábado – 9 Junho 2007
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