As novas gerações
Parece que, em 1822, o cardeal-patriarca de Lisboa foi enviado para o desterro por se ter recusado a jurar a constituição, que achava uma obra do anti-Cristo. Escuso de lembrar como D. Miguel, em Maio de 1823, acantonado em Vila Franca de Xira, resolveu proclamar o fim do novo regime. As grandes intenções são sempre tristes quando, ao fim de dois séculos, verificamos que levaram ao trágico caminho da derrota.
A tia Benedita foi criada pelo seu pai, nosso trisavô, no escândalo dessa derrota que a família não esqueceu, preferindo – em vez disso – ignorar o nome de Évora Monte. A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava "o Príncipe", era um testemunho que teria de passar às novas gerações; e, inadvertida e surpreendentemente, eu fazia parte das "novas gerações". Eu era "as novas gerações" a quem depois caberia explicar os méritos da vilafrancada e do levantamento contra a Carta expedida do Brasil por D. Pedro, que abdicava em favor da princesa do Grão-Pará, sua filha. A história explica, por linhas obscuras, como D. Pedro seria deposto no Brasil e regressara aos areais da pátria para que, mais tarde, Herculano pudesse chamar "desconchavos, torpezas, inépcias e incoerências" ao que se seguiu. Tão boa obra foi feita que Eça teria pedido, mais tarde, "uma tirania" que equilibrasse as coisas. Remédio tardio e inadequado. Durante estes anos, não fui (eu, "as novas gerações") capaz de explicar o enredo da história. Ai dos vencidos e do forçado pudor de ter calhado pertencer ao seu reino.
Seja como for, a família tem conservado o retrato do senhor D. Miguel entre as suas relíquias, e de vez em quando (por desfastio e irresponsabilidade) limita-se a comparar o brio oratório de José Acúrcio das Neves com o repentismo de Mouzinho da Silveira, para que, na disputa, possa atribuir alguma vantagem aos seus. Trazemos nos genes, pois, a inscrição dos derrotados, o que nos ensinou os hábitos da discrição, da benevolência e da ironia. Destes valores, o velho doutor Homem, meu pai, aproveitou o último com vantagem sua e – na época – cansaço da tia Benedita, que não aprovava o método. A luta surda entre aquelas duas almas marcou a história dos Homem do último século; nenhum deles foi vencedor absoluto. A seriedade da tia Benedita, com algum ressentimento à mistura, nunca conseguiu ultrapassar em popularidade o humor e a ironia do meu pai, cujos sarcasmos, por seu lado, nunca conseguiram esconder totalmente uma certa amargura.
Tal como a personagem de 'O Leopardo', de Lampedusa, o velho doutor Homem assistiu à ruína do seu mundo sem ruir com ele. Simplesmente, enquanto a maioria dos leitores de 'O Leopardo' critica a hipocrisia do príncipe, eu vejo nela alguma virtude.
Tentei explicar esta ideia tortuosa à minha sobrinha Maria Luísa. Com a idade, as "novas gerações" vão ficando mais interessantes, livrando-se das enfermidades da juventude. 'O Leopardo' foi uma das suas leituras e, para ela, o príncipe – representando "o velho mundo" – assemelhava-se um tanto aos heróis da máfia que apareceram no cinema como figuras românticas que afrontam o trono, o altar e os seus exércitos, como se fossem herdeiros do Robin dos Bosques. Educada pela história oficial, que trata os derrotados com dureza e obstinação, a minha sobrinha resiste ainda à ideia de que o mundo não está dividido em heróis e facínoras. O século XIX é para ela uma incógnita maior do que a revolução de 1974. O velho doutor Homem, meu pai, é para ela uma lembrança vaga a que o tempo e a idade emprestam agora mais graça e fascínio. Entrando na biblioteca, observando as lombadas dos livros, imagino que se interrogue como pôde aquele homem culto, irónico, céptico e mordaz (de que ela conheceu vagamente a figura) ser um herdeiro da velha ordem e não um revolucionário que combatesse as classes médias, a família e as instituições.
Primeiro, respondo que as coisas são como são, o que não a satisfaz. Depois, lembro-lhe de que Rousseau, que é considerado um grande pedagogo e um pensador revolucionário, abandonou os seus filhos e maltratava a sua pobre mulher. É um argumento descabido, mas diz muito sobre como as coisas são como são.
in Revista Notícias Sábado – 5 Maio 2007
A tia Benedita foi criada pelo seu pai, nosso trisavô, no escândalo dessa derrota que a família não esqueceu, preferindo – em vez disso – ignorar o nome de Évora Monte. A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava "o Príncipe", era um testemunho que teria de passar às novas gerações; e, inadvertida e surpreendentemente, eu fazia parte das "novas gerações". Eu era "as novas gerações" a quem depois caberia explicar os méritos da vilafrancada e do levantamento contra a Carta expedida do Brasil por D. Pedro, que abdicava em favor da princesa do Grão-Pará, sua filha. A história explica, por linhas obscuras, como D. Pedro seria deposto no Brasil e regressara aos areais da pátria para que, mais tarde, Herculano pudesse chamar "desconchavos, torpezas, inépcias e incoerências" ao que se seguiu. Tão boa obra foi feita que Eça teria pedido, mais tarde, "uma tirania" que equilibrasse as coisas. Remédio tardio e inadequado. Durante estes anos, não fui (eu, "as novas gerações") capaz de explicar o enredo da história. Ai dos vencidos e do forçado pudor de ter calhado pertencer ao seu reino.
Seja como for, a família tem conservado o retrato do senhor D. Miguel entre as suas relíquias, e de vez em quando (por desfastio e irresponsabilidade) limita-se a comparar o brio oratório de José Acúrcio das Neves com o repentismo de Mouzinho da Silveira, para que, na disputa, possa atribuir alguma vantagem aos seus. Trazemos nos genes, pois, a inscrição dos derrotados, o que nos ensinou os hábitos da discrição, da benevolência e da ironia. Destes valores, o velho doutor Homem, meu pai, aproveitou o último com vantagem sua e – na época – cansaço da tia Benedita, que não aprovava o método. A luta surda entre aquelas duas almas marcou a história dos Homem do último século; nenhum deles foi vencedor absoluto. A seriedade da tia Benedita, com algum ressentimento à mistura, nunca conseguiu ultrapassar em popularidade o humor e a ironia do meu pai, cujos sarcasmos, por seu lado, nunca conseguiram esconder totalmente uma certa amargura.
Tal como a personagem de 'O Leopardo', de Lampedusa, o velho doutor Homem assistiu à ruína do seu mundo sem ruir com ele. Simplesmente, enquanto a maioria dos leitores de 'O Leopardo' critica a hipocrisia do príncipe, eu vejo nela alguma virtude.
Tentei explicar esta ideia tortuosa à minha sobrinha Maria Luísa. Com a idade, as "novas gerações" vão ficando mais interessantes, livrando-se das enfermidades da juventude. 'O Leopardo' foi uma das suas leituras e, para ela, o príncipe – representando "o velho mundo" – assemelhava-se um tanto aos heróis da máfia que apareceram no cinema como figuras românticas que afrontam o trono, o altar e os seus exércitos, como se fossem herdeiros do Robin dos Bosques. Educada pela história oficial, que trata os derrotados com dureza e obstinação, a minha sobrinha resiste ainda à ideia de que o mundo não está dividido em heróis e facínoras. O século XIX é para ela uma incógnita maior do que a revolução de 1974. O velho doutor Homem, meu pai, é para ela uma lembrança vaga a que o tempo e a idade emprestam agora mais graça e fascínio. Entrando na biblioteca, observando as lombadas dos livros, imagino que se interrogue como pôde aquele homem culto, irónico, céptico e mordaz (de que ela conheceu vagamente a figura) ser um herdeiro da velha ordem e não um revolucionário que combatesse as classes médias, a família e as instituições.
Primeiro, respondo que as coisas são como são, o que não a satisfaz. Depois, lembro-lhe de que Rousseau, que é considerado um grande pedagogo e um pensador revolucionário, abandonou os seus filhos e maltratava a sua pobre mulher. É um argumento descabido, mas diz muito sobre como as coisas são como são.
in Revista Notícias Sábado – 5 Maio 2007
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