Causar impressão
Gosto do ar que os estrangeiros fazem quando lhes explicamos os hábitos fundamentais da pátria. Sobretudo quando arregalam muito os olhos até ficarem incolores, esforçando-se por mostrar um agrado que a surpresa não deixa à solta. Foi isso que vi na namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, que, como já expliquei, passou a maior parte da sua vida na ilha de Ameland, parece-me que um paraíso da Frísia. É a sua terceira visita a Portugal mas a primeira realmente "familiar" e até agora ninguém se ergueu da tumba dos Homem para relembrar a morte de um tio durante as guerras do Pernambuco (onde ele foi escrivão e secretário do governo em Olinda), quando os Oranje e os Nassau, vindos da Haia e de Roterdão, tomaram aquela parte do velho império. Parece-me que é justo não chamar o passado para estas circunstâncias; nas guerras morre-se com uma frequência muito semelhante àquela com que se mata, e a habilidade é estar no lado mais afortunado dos campos de batalha.
Os Homem raramente estiveram nesse lado; fomos vencidos em muitas guerras, o que contribuiu para que ganhássemos juízo bastante no último século. Nos anos distantes em que a tia Benedita se esforçava por manter a vetusta dignidade dos Homem de antanho, calhava relembrar os primos que combateram nas companhias de Dragões ao lado do general MacDonnelI e sob a bandeira do Senhor Dom Miguel, ou os antepassados que deixaram o nome e algum sangue pelos valados da Pátria.
O meu pai e os seus irmãos já tinham aprendido a encolher os ombros e limitavam-se a discutir pormenores e minudências, que eram bons para alimentar a sua erudição e as digestões mais exigentes. Depois das guerras, depois do setembrismo e da Maria da Fonte, depois do constitucionalismo e da República, mesmo durante o salazarismo, ou depois dele, a família portou-se bem: manteve os velhos retratos no seu lugar (mesmo os mais comprometedores), porque tinha a noção da lealdade e da honra, mas seguiu em frente sem ressentimentos, aconselhada pela intuição mais do que pela moral.
Só assim se explica a normalidade com que Isabelle, "a pequena holandesa" (como é tratada à mesa pela informalidade de dona Elaine, a governanta de Moledo), foi aceite paredes dentro sem ter de exibir certidão de casamento. Isso foi uma surpresa, não para nós, mas para ela, que julgou que uma velha família de um pobre e velho país como o nosso teria de viver pela cartilha de outro século.
O meu sobrinho Pedro contou-lhe, com o sentido das proporções de um guia de museu que enumera curiosidades que nunca vêm escritas no catálogo, algumas das excentricidades políticas da família. À "pequena holandesa" fez impressão, creio, a descontracção com que se encarou a sua chegada. Não sei como é na Frísia, mas creio que o problema é nós causarmos certa impressão: temos fama mas, no fundo, temos a noção das coisas. Vantagem nossa, causarmos impressão.
Já lhe prometeram, à "pequena holandesa", uma viagem a Ponte de Lima — mal o céu esteja mais nublado nos areais e pinhais de Moledo. Suponho que o objectivo é o de acrescentar mais "impressão". Ela vai arregalando os olhos, querendo mostrar agrado, mas o que ela está, verdadeiramente, é surpreendida. Ontem, ao jantar, atrevi-me a perorar sobre política, a abordar a questão colonial, mencionando – com grande risco – a questão pernambucana e a saída dos holandeses da península de Itamaracá, derrotados por um bando de portugueses e de índios e negros. Travei a tempo, quando a palavra Batávia aflorou sobre a mesa, distraída, tilintando nos copos – um tio de Isabelle foi um alto quadro do governo na Batávia de outros tempos, actual Jacarta. Depois disso, tomámos o café na varanda, diante do pinhal. Em bandos, os meus sobrinhos (e a "pequena holandesa") foram dispersando e deixando a casa entregue ao seu silêncio.
Esta manhã, ao pequeno-almoço (que geralmente tomo sozinho), com dona Elaine relembrando que tinham telefonado de Lisboa "pedindo a crónica", Isabelle afastou uma franja de cabelo claro, mordiscando um 'croissant', para dizer como estava comovida com Moledo e com as férias onde não se fazia absolutamente nada, no meio de uma família atrevida. "Causámos uma certa impressão", murmurou dona Elaine, depois de a "pequena holandesa" se ter retirado.
in Revista Notícias Sábado – 28 Julho 2007
Os Homem raramente estiveram nesse lado; fomos vencidos em muitas guerras, o que contribuiu para que ganhássemos juízo bastante no último século. Nos anos distantes em que a tia Benedita se esforçava por manter a vetusta dignidade dos Homem de antanho, calhava relembrar os primos que combateram nas companhias de Dragões ao lado do general MacDonnelI e sob a bandeira do Senhor Dom Miguel, ou os antepassados que deixaram o nome e algum sangue pelos valados da Pátria.
O meu pai e os seus irmãos já tinham aprendido a encolher os ombros e limitavam-se a discutir pormenores e minudências, que eram bons para alimentar a sua erudição e as digestões mais exigentes. Depois das guerras, depois do setembrismo e da Maria da Fonte, depois do constitucionalismo e da República, mesmo durante o salazarismo, ou depois dele, a família portou-se bem: manteve os velhos retratos no seu lugar (mesmo os mais comprometedores), porque tinha a noção da lealdade e da honra, mas seguiu em frente sem ressentimentos, aconselhada pela intuição mais do que pela moral.
Só assim se explica a normalidade com que Isabelle, "a pequena holandesa" (como é tratada à mesa pela informalidade de dona Elaine, a governanta de Moledo), foi aceite paredes dentro sem ter de exibir certidão de casamento. Isso foi uma surpresa, não para nós, mas para ela, que julgou que uma velha família de um pobre e velho país como o nosso teria de viver pela cartilha de outro século.
O meu sobrinho Pedro contou-lhe, com o sentido das proporções de um guia de museu que enumera curiosidades que nunca vêm escritas no catálogo, algumas das excentricidades políticas da família. À "pequena holandesa" fez impressão, creio, a descontracção com que se encarou a sua chegada. Não sei como é na Frísia, mas creio que o problema é nós causarmos certa impressão: temos fama mas, no fundo, temos a noção das coisas. Vantagem nossa, causarmos impressão.
Já lhe prometeram, à "pequena holandesa", uma viagem a Ponte de Lima — mal o céu esteja mais nublado nos areais e pinhais de Moledo. Suponho que o objectivo é o de acrescentar mais "impressão". Ela vai arregalando os olhos, querendo mostrar agrado, mas o que ela está, verdadeiramente, é surpreendida. Ontem, ao jantar, atrevi-me a perorar sobre política, a abordar a questão colonial, mencionando – com grande risco – a questão pernambucana e a saída dos holandeses da península de Itamaracá, derrotados por um bando de portugueses e de índios e negros. Travei a tempo, quando a palavra Batávia aflorou sobre a mesa, distraída, tilintando nos copos – um tio de Isabelle foi um alto quadro do governo na Batávia de outros tempos, actual Jacarta. Depois disso, tomámos o café na varanda, diante do pinhal. Em bandos, os meus sobrinhos (e a "pequena holandesa") foram dispersando e deixando a casa entregue ao seu silêncio.
Esta manhã, ao pequeno-almoço (que geralmente tomo sozinho), com dona Elaine relembrando que tinham telefonado de Lisboa "pedindo a crónica", Isabelle afastou uma franja de cabelo claro, mordiscando um 'croissant', para dizer como estava comovida com Moledo e com as férias onde não se fazia absolutamente nada, no meio de uma família atrevida. "Causámos uma certa impressão", murmurou dona Elaine, depois de a "pequena holandesa" se ter retirado.
in Revista Notícias Sábado – 28 Julho 2007
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