A leveza da vida
O conde Tolstoi era um homem talentoso, um génio e um tonto. Foi assim que o velho Doutor Homem, meu pai, arrasou pelo menos meio século de literatura russa, as três mil páginas de “Guerra e Paz” e a ideia de que aquele velho de barbas, transido pelo frio, era um génio irrepreensível. Suponho que o que o irritava em Tolstoi não era tanto a volumetria de “Guerra e Paz”, ou a figura supostamente esbelta de Ana Karenina (nessa altura éramos muito românticos e apreciávamos aquelas mulheres brancas, aloiradas, carregadas de culpa), mas o carácter doidivanas do conde e as suas presunções de velho profeta russo com aquela sinistra tendência para salvar o mundo.
Quando queria desmoralizar o nosso gosto por um escritor, o meu pai usava um título antes do nome – embora não fosse frequente, longe disso, referir-se a Garrett, era obrigatório tratá-lo por “o visconde” ou “o seminarista” (e às vezes “o seminarista de Angra”, o que já nos parecia um excesso). Também tratava outros autores por “otorrinolaringologista”, embora “amanuense” fosse a mais snobe das designações, certamente classista e com um fingimento aristocrático que não passava disso mesmo. Portanto, Tolstoi seria sempre “o conde Tolstoi”, querendo com isso dizer que dispensava “Guerra e Paz”. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que salvar o mundo não era uma tarefa nem um desígnio, antes uma frase com um verbo fora do lugar.
Esse cepticismo geral significava estar convencido de que o mundo não tinha salvação e, portanto, o melhor seria procurar levar uma vida decente. Era uma posição moralmente insustentável, decerto. Não se tratava, neste caso, de misantropia mas apenas de cepticismo: os intelectuais não eram pessoas confiáveis como salvadores do mundo. Ou as ideias eram mal expostas ou os resultados decepcionantes e amargos. Ele tinha a impressão de que qualquer intelectual iria querer subordinar as pessoas às suas ideias, esquecendo que o país era sobretudo um universo de pessoas reais carregadas de defeitos ainda mais decepcionantes e amargos.
Uma das razões que o levavam a ser paciente para com a Tia Benedita, que incarnava todo o espírito ultramontano e anti-republicano dos Homem, era precisamente o seu cepticismo radical. Depois de Sidónio Pais, a senhora, influenciada por jornais das dioceses e pelas novenas marianas de Ponte de Lima, passou a descrer do universo em geral, vendo no espectro do doutor Afonso Costa e na obra dos ditadores de 1910 a ameaça da desintegração. Ele não apreciava o rancor, certamente, mas via nessa determinação da Tia Benedita uma forma de humor relativamente burlesca que o fazia rir e, ao mesmo tempo, considerar que os seus excessos não passavam de excessos e eram, por isso mesmo, inofensivos.
Hoje, quando observo a sua biblioteca – ordenada, lida e escolhida –, que incorporei no meu desorganizado armazém de livros, tento ver nela um sentido que desconheço. Vivi uma vida inteira sem ter aprendido que as coisas são como são. Mesmo depois dos oitenta sinto uma grande nostalgia desses anos. Dona Ester, minha mãe, fez um bom trabalho enquanto teve tempo, poupando-me a descida aos infernos, pondo-me a salvo de algumas fatalidades amorosas e mostrando-me que um cavalheiro não malbarata a sua sensibilidade. Em tempos, como contei aos meus leitores, houve uma senhora que me mostrou a leveza da vida; a expressão é pobre mas é a mais adequada. Nessa época eu nada sabia das variações do clima (tudo aconteceu nos trópicos, sob a moderação do céu do Rio de Janeiro), nem tinha lido os autores que ainda hoje emprestam sabor e dignidade à minha vida, de Tristram Shandy a Camilo, dos clássicos aos esquecidos de anteontem. Também não conhecia, é verdade, a proximidade do fim. Mas aprendi tarde demais a ciência dos cépticos. O velho Doutor Homem, com a sua sabedoria tranquila, identificava em Tolstoi essa doença do tempo e da viragem do século, tentando salvar o mundo e, pior, encontrando nisso alguma racionalidade. Quando o desvario doidivanas se junta à tendência para um homem se transformar em profeta, o próximo passo é a presunção absoluta. Era isso que ele apreciava na figura caricatural da Tia Benedita; ambos sabiam que aquele exagero era fingimento. Mas fingir não é pecado e ajuda a salvar a vida. Não a salvar o mundo, que é impossível. Mas uma vida é bastante.
in Revista Notícias Sábado – 7 Outubro 2006
Quando queria desmoralizar o nosso gosto por um escritor, o meu pai usava um título antes do nome – embora não fosse frequente, longe disso, referir-se a Garrett, era obrigatório tratá-lo por “o visconde” ou “o seminarista” (e às vezes “o seminarista de Angra”, o que já nos parecia um excesso). Também tratava outros autores por “otorrinolaringologista”, embora “amanuense” fosse a mais snobe das designações, certamente classista e com um fingimento aristocrático que não passava disso mesmo. Portanto, Tolstoi seria sempre “o conde Tolstoi”, querendo com isso dizer que dispensava “Guerra e Paz”. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que salvar o mundo não era uma tarefa nem um desígnio, antes uma frase com um verbo fora do lugar.
Esse cepticismo geral significava estar convencido de que o mundo não tinha salvação e, portanto, o melhor seria procurar levar uma vida decente. Era uma posição moralmente insustentável, decerto. Não se tratava, neste caso, de misantropia mas apenas de cepticismo: os intelectuais não eram pessoas confiáveis como salvadores do mundo. Ou as ideias eram mal expostas ou os resultados decepcionantes e amargos. Ele tinha a impressão de que qualquer intelectual iria querer subordinar as pessoas às suas ideias, esquecendo que o país era sobretudo um universo de pessoas reais carregadas de defeitos ainda mais decepcionantes e amargos.
Uma das razões que o levavam a ser paciente para com a Tia Benedita, que incarnava todo o espírito ultramontano e anti-republicano dos Homem, era precisamente o seu cepticismo radical. Depois de Sidónio Pais, a senhora, influenciada por jornais das dioceses e pelas novenas marianas de Ponte de Lima, passou a descrer do universo em geral, vendo no espectro do doutor Afonso Costa e na obra dos ditadores de 1910 a ameaça da desintegração. Ele não apreciava o rancor, certamente, mas via nessa determinação da Tia Benedita uma forma de humor relativamente burlesca que o fazia rir e, ao mesmo tempo, considerar que os seus excessos não passavam de excessos e eram, por isso mesmo, inofensivos.
Hoje, quando observo a sua biblioteca – ordenada, lida e escolhida –, que incorporei no meu desorganizado armazém de livros, tento ver nela um sentido que desconheço. Vivi uma vida inteira sem ter aprendido que as coisas são como são. Mesmo depois dos oitenta sinto uma grande nostalgia desses anos. Dona Ester, minha mãe, fez um bom trabalho enquanto teve tempo, poupando-me a descida aos infernos, pondo-me a salvo de algumas fatalidades amorosas e mostrando-me que um cavalheiro não malbarata a sua sensibilidade. Em tempos, como contei aos meus leitores, houve uma senhora que me mostrou a leveza da vida; a expressão é pobre mas é a mais adequada. Nessa época eu nada sabia das variações do clima (tudo aconteceu nos trópicos, sob a moderação do céu do Rio de Janeiro), nem tinha lido os autores que ainda hoje emprestam sabor e dignidade à minha vida, de Tristram Shandy a Camilo, dos clássicos aos esquecidos de anteontem. Também não conhecia, é verdade, a proximidade do fim. Mas aprendi tarde demais a ciência dos cépticos. O velho Doutor Homem, com a sua sabedoria tranquila, identificava em Tolstoi essa doença do tempo e da viragem do século, tentando salvar o mundo e, pior, encontrando nisso alguma racionalidade. Quando o desvario doidivanas se junta à tendência para um homem se transformar em profeta, o próximo passo é a presunção absoluta. Era isso que ele apreciava na figura caricatural da Tia Benedita; ambos sabiam que aquele exagero era fingimento. Mas fingir não é pecado e ajuda a salvar a vida. Não a salvar o mundo, que é impossível. Mas uma vida é bastante.
in Revista Notícias Sábado – 7 Outubro 2006
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