Os mistérios da pedagogia
Não há muitas razões para se ser assim. Os historiadores e os sociólogos (no meu tempo não havia sociólogos, e a sociologia é uma ciência dos anos optimistas, como me explicou a minha sobrinha) explicariam a minha preguiça, a minha velhice relativamente confortável, até as minhas ideias sobre a desorganização do mundo. No entanto, tenho a impressão de que alguma coisa falharia. Só a vaidade justifica que nunca nos sintamos satisfeitos com as explicações acerca do nosso carácter, que em tempos julgámos ser uma coisa relativamente privada.
As minhas irmãs acham-me uma figura parecida com a solidão do Santuário de São Bento da Porta Aberta – elas entendem que me faltou uma mulher, como Adão precisou de Eva para conhecer o pecado. Uma mulher tornearia a minha preguiça e evitaria que se acumulassem tantos livros na biblioteca; teria tido filhos, netos, preocupações, ferramentas na garagem, 'bricolage' e, suponho, não acharia indispensáveis os almoços de domingo, esse hábito que raramente admite uma falta nas famílias de antanho. O velho doutor Homem, meu pai, criou-o entre os seus, suponho que para recolher informações acerca de todos nós e na primeira pessoa, sentados à mesa da casa do Porto.
A esta distância, penso que o velho causídico se preocupou bastante com a família, mas não exagerou. Ele sabia que o melhor remédio para manter firmes esses laços naturais era um certo desinteresse, fingido ou não, mas praticado. Acompanhava os nossos estudos sem se intrometer – aguardava os resultados, punia com seriedade, festejava sem euforia, prometia recompensas modestas. Não conhecia os pedagogos nem a pedagogia, outra das novas ciências sucedâneas da puericultura, e tratou-nos, a todos e sem excepção, como se Rousseau não tivesse existido: pequenos adultos que fugiam da barbárie e se civilizavam à medida que iam deixando de causar incómodos. O resto resumia-se a minudências que se resolviam com simplicidade. Acreditava que lhe bastava mostrar-se e fazer perguntas. O método resultou. Sei pouco do assunto; limito-me e limitei-me a observar o modo como os meus sobrinhos foram crescendo até se mostrarem úteis para uma conversa com predicado, sujeito e complemento directo.
As minhas irmãs e as minhas cunhadas comentavam assuntos desses, mas a idade e o tempo têm uma vantagem superlativa sobre todas as outras formas de interromper um tema desagradável: tornam-no desnecessário e ultrapassado. Depois de educados os filhos, sobrevêm os casamentos, os netos e os divórcios. Actualmente, parece haver uma idade em que agridem professores e se iniciam na desobediência activa. Atribuem a calamidade às escolas, onde conhecem o risco em vez da obrigação do trabalho, mas a verdade é que há outras razões – falta de maneiras à mesa, deficiências nas hierarquias e a ideia de que o mundo tem um centro que é ocupado pelos "jovens", vastamente confundidos com pequenos.
Pelos padrões de hoje, o velho doutor Homem, meu pai, seria considerado um pai frio e distante. Sempre julguei que a distância era uma das suas muitas virtudes, que todos nós aproveitámos, evitando-nos embaraços e concedendo-nos mais liberdade. Hoje em dia apela-se bastante "ao diálogo"; na minha ignorância sobre estas coisas, sempre pensei que faltava um pouco de ordem e de almoços de domingo. Falar sobre quê? Naturalmente, creio eu, sobre as dificuldades da existência e os seus mistérios. O "diálogo" parece ser um remédio constante para todos os males, mas trata-se apenas de uma variação. No fundo, depois de abolida a "conversa à mesa", o "diálogo" substituiu-a como uma espécie de parlamento em que todos valem o mesmo e em que se fala para fazer valer os argumentos de cada um. Neste capítulo, o velho doutor Homem, meu pai, considerava que um pouco de injustiça formava o carácter e amaciava o tom de voz. Não era o segredo para uma educação perfeita (eu sou o resultado provável dos seus erros), mas vivíamos num mundo onde ainda não tinham nascido Mary Quant nem o ié-ié. Depois da psicanálise, da invenção da "juventude" e da pedagogia, o mundo é muito mais esclarecido sobre os profundos abismos da alma. Mas isso é uma coisa; outra coisa, inteiramente diferente, é admitir que essa alma ainda vale alguma coisa.
in Revista Notícias Sábado – 30 Setembro 2006
As minhas irmãs acham-me uma figura parecida com a solidão do Santuário de São Bento da Porta Aberta – elas entendem que me faltou uma mulher, como Adão precisou de Eva para conhecer o pecado. Uma mulher tornearia a minha preguiça e evitaria que se acumulassem tantos livros na biblioteca; teria tido filhos, netos, preocupações, ferramentas na garagem, 'bricolage' e, suponho, não acharia indispensáveis os almoços de domingo, esse hábito que raramente admite uma falta nas famílias de antanho. O velho doutor Homem, meu pai, criou-o entre os seus, suponho que para recolher informações acerca de todos nós e na primeira pessoa, sentados à mesa da casa do Porto.
A esta distância, penso que o velho causídico se preocupou bastante com a família, mas não exagerou. Ele sabia que o melhor remédio para manter firmes esses laços naturais era um certo desinteresse, fingido ou não, mas praticado. Acompanhava os nossos estudos sem se intrometer – aguardava os resultados, punia com seriedade, festejava sem euforia, prometia recompensas modestas. Não conhecia os pedagogos nem a pedagogia, outra das novas ciências sucedâneas da puericultura, e tratou-nos, a todos e sem excepção, como se Rousseau não tivesse existido: pequenos adultos que fugiam da barbárie e se civilizavam à medida que iam deixando de causar incómodos. O resto resumia-se a minudências que se resolviam com simplicidade. Acreditava que lhe bastava mostrar-se e fazer perguntas. O método resultou. Sei pouco do assunto; limito-me e limitei-me a observar o modo como os meus sobrinhos foram crescendo até se mostrarem úteis para uma conversa com predicado, sujeito e complemento directo.
As minhas irmãs e as minhas cunhadas comentavam assuntos desses, mas a idade e o tempo têm uma vantagem superlativa sobre todas as outras formas de interromper um tema desagradável: tornam-no desnecessário e ultrapassado. Depois de educados os filhos, sobrevêm os casamentos, os netos e os divórcios. Actualmente, parece haver uma idade em que agridem professores e se iniciam na desobediência activa. Atribuem a calamidade às escolas, onde conhecem o risco em vez da obrigação do trabalho, mas a verdade é que há outras razões – falta de maneiras à mesa, deficiências nas hierarquias e a ideia de que o mundo tem um centro que é ocupado pelos "jovens", vastamente confundidos com pequenos.
Pelos padrões de hoje, o velho doutor Homem, meu pai, seria considerado um pai frio e distante. Sempre julguei que a distância era uma das suas muitas virtudes, que todos nós aproveitámos, evitando-nos embaraços e concedendo-nos mais liberdade. Hoje em dia apela-se bastante "ao diálogo"; na minha ignorância sobre estas coisas, sempre pensei que faltava um pouco de ordem e de almoços de domingo. Falar sobre quê? Naturalmente, creio eu, sobre as dificuldades da existência e os seus mistérios. O "diálogo" parece ser um remédio constante para todos os males, mas trata-se apenas de uma variação. No fundo, depois de abolida a "conversa à mesa", o "diálogo" substituiu-a como uma espécie de parlamento em que todos valem o mesmo e em que se fala para fazer valer os argumentos de cada um. Neste capítulo, o velho doutor Homem, meu pai, considerava que um pouco de injustiça formava o carácter e amaciava o tom de voz. Não era o segredo para uma educação perfeita (eu sou o resultado provável dos seus erros), mas vivíamos num mundo onde ainda não tinham nascido Mary Quant nem o ié-ié. Depois da psicanálise, da invenção da "juventude" e da pedagogia, o mundo é muito mais esclarecido sobre os profundos abismos da alma. Mas isso é uma coisa; outra coisa, inteiramente diferente, é admitir que essa alma ainda vale alguma coisa.
in Revista Notícias Sábado – 30 Setembro 2006
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