Os males da existência
Às vezes recordo como Ponte de Lima era diferente nesses dias. O velho casarão continua aberto e é ocupado com pendular regularidade de tempos a tempos, para as reuniões da família, e nunca se colocou a hipótese de abandoná-lo. Nesse meu tempo – refiro-me àquilo que hoje se designa por adolescência – Ponte de Lima era a sede de uma parte do velho Minho romântico, de granitos e verdes escuros. Há toda uma filosofia e uma metafísica sobre o verde do Minho e eu reconheço os seus prolegómenos quando alguém começa a discorrer sobre os verdes de outras terras – o verde-terra de Trás-os-Montes, o verde-seco da Beira, o verde-eucalipto do litoral. Seja, pois, o verde impenetrável do Minho: aquele que tem mais tonalidades, desde a videira de enforcado aos pinhais das encostas e às florestas que encostam a província ao Gerês.
Eu tive, durante duas ou três décadas, a estultice de me julgar um botânico amador, cuidando de ser o único membro da família a especializar-me em hibiscos que, com a sua folha de verde imaculado e a flor frágil, seria até a menos indicada para crescer nas proximidades do mar de Moledo. Porém, a teimosia é um factor com que a Natureza conta sempre, e os hibiscos de Moledo sobreviveram às neblinas, ao salitre e às ventanias. Tamanha coragem e galhardia fez crescer a admiração que lhes tinha – mas a verdade é que os hibiscos mudaram a minha vida. A minha irmã mais nova, que raramente consegue distinguir uma mimosa de uma couve-galega, considerou que as atenções da paternidade (de que nunca padeci, como o leitor conhece) me tinham sido desviadas para as singelas flores que vieram da China para os nossos jardins de temperaturas moderadas. A falar verdade, elas dão-se melhor em temperaturas e humidades tropicais, mas, como se sabe, não há clima que Moledo não visite ao longo do ano (falta-lhe, apenas, o gelo nórdico e polar, que dispenso). Por alguns anos, os vasos e canteiros de hibiscos, ‘syriacus’ ou ‘rosa-sinensis,’ com as suas campânulas rosadas, vermelhas, alaranjadas, esbranquiçadas, eram praticamente o único ornamento colorido do jardim de casa. Dona Elaine, com o seu tom prático de governanta esclarecida, protestava pelo facto de não se poderem – em bom rigor, ela tinha razão – cortar e pôr em jarras à maneira das rosas. Mas satisfazia-se com os braços escuros das japoneiras, o nome que o velho Porto continuou a usar durante muito tempo para designar as camélias dos seus jardins românticos, e que o velho Doutor Homem, meu pai, dizia ser uma planta honrada.
Nunca, nos longos almoços dominicais à mesa da sala de Moledo, houve grandes debates sobre os hibiscos; eles não participam do conjunto de males da existência de que uma família vulgar se possa queixar à sobremesa. A botânica foi sempre uma ciência pouco divulgada paredes dentro.
A tia Benedita, a quem coube o dever zelar pelo ramo ultramontano da família, tem alguma responsabilidade por essa degenerescência romântica de que padeço: o jardim de Ponte de Lima esteve sempre cheio de corredores floridos que amenizavam o peso granítico do casarão. Ela devotava-lhes alguma dedicação sincera e protegia-os como uma matriarca reaccionária, vigilante, a quem a República tinha roubado os padres e destruído o temor do Inferno. Tive sempre admiração por ela, mesmo quando a sua desadaptação aos tempos se tornava insuportável, rezando novenas e promovendo terços marianos pela conversão da Rússia e pela ida do Dr. Afonso Costa para o fogo dos infernos. O seu espírito decidido, que poucas vezes encontrava razões para se comover, amolecia diante desses canteiros que, no fundo, eram uma espécie de purgatório feliz, uma tentativa de absolver a sua soberba e a forma como descria da humanidade.
Os meus sobrinhos partilham dessa admiração sem saberem. Nunca conheceram a tia Benedita, não sabem quem foi Afonso Costa, nem reconhecem Évora Monte – onde o general Azevedo Lemos reconheceu a derrota do senhor Dom Miguel. Mas veneram as flores daquele tio que passa por ser um Matusalém minhoto e, pelo menos uma vez ao ano, por delicadeza, mostram-se curiosos sobre o assunto. Pensando bem, os hibiscos não têm nada a ver com as desilusões políticas da família: limitaram-se a vir da China.
in Revista Notícias Sábado – 2 Setembro 2006
Eu tive, durante duas ou três décadas, a estultice de me julgar um botânico amador, cuidando de ser o único membro da família a especializar-me em hibiscos que, com a sua folha de verde imaculado e a flor frágil, seria até a menos indicada para crescer nas proximidades do mar de Moledo. Porém, a teimosia é um factor com que a Natureza conta sempre, e os hibiscos de Moledo sobreviveram às neblinas, ao salitre e às ventanias. Tamanha coragem e galhardia fez crescer a admiração que lhes tinha – mas a verdade é que os hibiscos mudaram a minha vida. A minha irmã mais nova, que raramente consegue distinguir uma mimosa de uma couve-galega, considerou que as atenções da paternidade (de que nunca padeci, como o leitor conhece) me tinham sido desviadas para as singelas flores que vieram da China para os nossos jardins de temperaturas moderadas. A falar verdade, elas dão-se melhor em temperaturas e humidades tropicais, mas, como se sabe, não há clima que Moledo não visite ao longo do ano (falta-lhe, apenas, o gelo nórdico e polar, que dispenso). Por alguns anos, os vasos e canteiros de hibiscos, ‘syriacus’ ou ‘rosa-sinensis,’ com as suas campânulas rosadas, vermelhas, alaranjadas, esbranquiçadas, eram praticamente o único ornamento colorido do jardim de casa. Dona Elaine, com o seu tom prático de governanta esclarecida, protestava pelo facto de não se poderem – em bom rigor, ela tinha razão – cortar e pôr em jarras à maneira das rosas. Mas satisfazia-se com os braços escuros das japoneiras, o nome que o velho Porto continuou a usar durante muito tempo para designar as camélias dos seus jardins românticos, e que o velho Doutor Homem, meu pai, dizia ser uma planta honrada.
Nunca, nos longos almoços dominicais à mesa da sala de Moledo, houve grandes debates sobre os hibiscos; eles não participam do conjunto de males da existência de que uma família vulgar se possa queixar à sobremesa. A botânica foi sempre uma ciência pouco divulgada paredes dentro.
A tia Benedita, a quem coube o dever zelar pelo ramo ultramontano da família, tem alguma responsabilidade por essa degenerescência romântica de que padeço: o jardim de Ponte de Lima esteve sempre cheio de corredores floridos que amenizavam o peso granítico do casarão. Ela devotava-lhes alguma dedicação sincera e protegia-os como uma matriarca reaccionária, vigilante, a quem a República tinha roubado os padres e destruído o temor do Inferno. Tive sempre admiração por ela, mesmo quando a sua desadaptação aos tempos se tornava insuportável, rezando novenas e promovendo terços marianos pela conversão da Rússia e pela ida do Dr. Afonso Costa para o fogo dos infernos. O seu espírito decidido, que poucas vezes encontrava razões para se comover, amolecia diante desses canteiros que, no fundo, eram uma espécie de purgatório feliz, uma tentativa de absolver a sua soberba e a forma como descria da humanidade.
Os meus sobrinhos partilham dessa admiração sem saberem. Nunca conheceram a tia Benedita, não sabem quem foi Afonso Costa, nem reconhecem Évora Monte – onde o general Azevedo Lemos reconheceu a derrota do senhor Dom Miguel. Mas veneram as flores daquele tio que passa por ser um Matusalém minhoto e, pelo menos uma vez ao ano, por delicadeza, mostram-se curiosos sobre o assunto. Pensando bem, os hibiscos não têm nada a ver com as desilusões políticas da família: limitaram-se a vir da China.
in Revista Notícias Sábado – 2 Setembro 2006
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