A insónia
Quando era jovem não tinha insónias. Atribuo o facto à minha vida desinteressante distribuída pelo escritório, pelo cumprimento dos deveres profissionais e pelas amizades da época. As minhas irmãs, que sempre me olharam com a curiosidade que se deveria devotar a uma espécie rara, e que nesse papel tentaram depois substituir Dona Ester (minha mãe), acrescentam a falta de preocupações familiares e a ausência de uma mulher que castigasse a leviandade do meu carácter. Em seu entender, uma esposa deveria proporcionar-me um nível adequado de preocupações de modo a economizar no sono e a manter-me acordado quando o corpo me ordenasse que dormisse. Admito que seja assim, mas não quero menosprezar o velho hábito de beber café de cevada – uma das tradições do Porto – e de manter a rotina de jogar brídge em dias certos da semana.
Esses horários e hábitos que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram-me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias. Infelizmente, hoje acompanho os meus sobrinhos (mas em lugares diferentes) na prática de vigílias que irrompem noite dentro. Os velhos dormem menos. Os meus sobrinhos, cruzando os trinta, também. Acompanho essas insónias quase juvenis à distância, com interesse, mas sem a veneração dos idólatras. Há, nas pessoas que não sofrem de insónia, uma disciplina que os transforma em exemplares do Paleolítico: na maior parte dos casos usam pijama, têm uma hora certa para cumprir certas tarefas, espremem o tubo da pasta de dentes pelo fundo, tentam ocupar o mesmo lugar à mesa. Padecem, evidentemente, de defeitos incomportáveis – mas levantam-se, em geral, mais cedo.
O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de brídge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico. O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados depois de 1950.
“O senhor doutor”, conferiu certo dia Dona Elaine, a governanta de Moledo, “é muito arrumadinho.” Ela olhava em volta do quarto e da biblioteca (designação obtusa que conservo para o armazém de livros onde juntei os milhares de exemplares que tinham pertencido ao velho Doutor Homem, meu pai, à lista de curiosidades literárias e outras velharias que fui reunindo) e tenho de concordar que se trata de uma característica irritante, “ser arrumadinho”. Confesso que faltou sempre, à biblioteca ou ao quarto, aquele ar romântico e displicente onde cabem um livro no chão, um maço de jornais amontoados, um tom de vida vivida e ligeiramente desarrumada. Nunca tive esse talento nem a centelha de génio e de criatividade que viessem pôr em desacordo a forma como conjuguei os lugares da minha vida e a recordação deles. Tendo deixado de fumar aos cinquenta e cinco anos (ao contrário do meu pai, que entrou na derradeira década da sua vida temendo pelo desaparecimento abrupto dos cigarros “Paris”), até esse elemento de distúrbio deixou de cumprir a sua função no organismo, tal como certo catarro romântico e de “ancien régime”.
Passei a ter insónias só depois dessa época, quando me preparei para os achaques da minha idade madura e definitiva, trocando a leviandade do carácter por alguns (excessivos) cuidados recomendados pelo meu médico de Viana do Castelo, que acompanha as minhas coronárias desde que me mudei para Moledo.
A minha sobrinha Maria Luísa vem com os dois filhos passar fins-de-semana entre os pinhais e a praia de Moledo, e considera que esta casa “a deixa dormir”. Na verdade acho que isso se deve ao facto de Dona Elaine se deitar cedo e acordar cedo, o que significa que o pequeno-almoço está preparado na mesa da cozinha. A governanta, naturalmente, acha que um espírito tranquilo favorece um sono tranquilo. Ela tem razão. Aqui, a minha sobrinha, que em Braga vota no Bloco de Esquerda, sente-se protegida do desvario e tem sonos pesados, longos, outonais, conservadores. Por essa ordem de ideias, as minhas insónias devem-se a um desvio político que desconheço.
in Revista Notícias Sábado – 23 Setembro 2006
Esses horários e hábitos que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram-me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias. Infelizmente, hoje acompanho os meus sobrinhos (mas em lugares diferentes) na prática de vigílias que irrompem noite dentro. Os velhos dormem menos. Os meus sobrinhos, cruzando os trinta, também. Acompanho essas insónias quase juvenis à distância, com interesse, mas sem a veneração dos idólatras. Há, nas pessoas que não sofrem de insónia, uma disciplina que os transforma em exemplares do Paleolítico: na maior parte dos casos usam pijama, têm uma hora certa para cumprir certas tarefas, espremem o tubo da pasta de dentes pelo fundo, tentam ocupar o mesmo lugar à mesa. Padecem, evidentemente, de defeitos incomportáveis – mas levantam-se, em geral, mais cedo.
O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de brídge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico. O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados depois de 1950.
“O senhor doutor”, conferiu certo dia Dona Elaine, a governanta de Moledo, “é muito arrumadinho.” Ela olhava em volta do quarto e da biblioteca (designação obtusa que conservo para o armazém de livros onde juntei os milhares de exemplares que tinham pertencido ao velho Doutor Homem, meu pai, à lista de curiosidades literárias e outras velharias que fui reunindo) e tenho de concordar que se trata de uma característica irritante, “ser arrumadinho”. Confesso que faltou sempre, à biblioteca ou ao quarto, aquele ar romântico e displicente onde cabem um livro no chão, um maço de jornais amontoados, um tom de vida vivida e ligeiramente desarrumada. Nunca tive esse talento nem a centelha de génio e de criatividade que viessem pôr em desacordo a forma como conjuguei os lugares da minha vida e a recordação deles. Tendo deixado de fumar aos cinquenta e cinco anos (ao contrário do meu pai, que entrou na derradeira década da sua vida temendo pelo desaparecimento abrupto dos cigarros “Paris”), até esse elemento de distúrbio deixou de cumprir a sua função no organismo, tal como certo catarro romântico e de “ancien régime”.
Passei a ter insónias só depois dessa época, quando me preparei para os achaques da minha idade madura e definitiva, trocando a leviandade do carácter por alguns (excessivos) cuidados recomendados pelo meu médico de Viana do Castelo, que acompanha as minhas coronárias desde que me mudei para Moledo.
A minha sobrinha Maria Luísa vem com os dois filhos passar fins-de-semana entre os pinhais e a praia de Moledo, e considera que esta casa “a deixa dormir”. Na verdade acho que isso se deve ao facto de Dona Elaine se deitar cedo e acordar cedo, o que significa que o pequeno-almoço está preparado na mesa da cozinha. A governanta, naturalmente, acha que um espírito tranquilo favorece um sono tranquilo. Ela tem razão. Aqui, a minha sobrinha, que em Braga vota no Bloco de Esquerda, sente-se protegida do desvario e tem sonos pesados, longos, outonais, conservadores. Por essa ordem de ideias, as minhas insónias devem-se a um desvio político que desconheço.
in Revista Notícias Sábado – 23 Setembro 2006
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