sábado, agosto 26, 2006

O final do Verão

Aproveito a neblina do princípio da manhã para escre­ver. Não tenho método, a falar verdade, e não fosse o génio avisado e disciplinado de Dona Elaine (a governanta do eremitério de Moledo), várias vezes teria faltado à obrigação de escrever estas linhas. Houve um período, na história da minha vaidade como cronista, em que um ligeiro atraso no envio destas quatro páginas manuscritas de papel branco (excepção feita quando a minha sobrinha Maria Luísa faz o favor de me explicar que a Internet constitui uma fonte de sal­vação - e é ela própria quem dactilografa e "envia a crónica para Lisboa", não sei bem como) significava um pequeno sobressalto no meu telefone: ou se tratava do dr. Camacho, simpático, a perguntar pela minha saúde e pelo clima de Moledo (ele prometia vir de férias ao Minho), ou do dr. Pombeiro, solícito, querendo saber a minha opinião acerca da mudança de um título ou de uma palavra. Compreendi que se tratava de uma justa preocupação, embora nunca men­cionassem "o pequeno atraso" no envio da crónica - temiam pela minha saúde, verdadeiramente; ou seja, pela saúde da crónica. Um cronista periclitante, soube-o então, era um factor de perturbação nas redacções, sobretudo quando chegava o Inverno e a ameaça de um eventual resfriado que viesse incomodar os demónios da inspiração, transitoriamente insta­lados em Moledo e destinados a serviço hebdomadário.

De entre as razões que me levaram, há quase vinte anos, a deixar o Porto e, com a biblioteca e os álbuns de família, a instalar-me em Moledo, a saúde era uma das mais invocadas. Nessa altura ainda havia pessoas que acreditavam nas virtudes dos lugares para benefício da saúde. Existiam paragens dóceis para o reumatismo e aragens reco­mendáveis para a asma, para os rins (por causa das águas, que deviam ser leves e com ligeiras proprieda­des diuréticas) ou para os males do espírito - nesses tempos, a palavra "alma" era já uma velharia conside­rável que nem os teólogos utiliza­vam.

Não sendo a salvação da minha alma uma preocupação fundamen­tal, a casa de Moledo serviria como retiro para os anos da reforma - e era, bem vistas as coisas, outro país, escondi­do da estrada e recolhido ã nobreza antiga dos seus outonos plácidos e teatrais. O horizonte da ínsua (do outro eram os pinhais esplêndidos) era o palco dessa grandeza, tal como a sua praia varrida pelo vento e abandonada, em meados de Setembro, pêlos habituais frequentadores do Verão. O velho doutor Homem, meu pai, nunca chegou a apreciar verdadeira­mente a paisagem que o deslumbrou algumas vezes, vista da varanda, mas considerou largamente que se tratava de um bom espectáculo. Eu vim para esse espectáculo. O propósito era honesto e sem subterfúgios.

Os meus sobrinhos, que se tornaram também frequentadores da casa, vêem-na como um albergue. E eu devia considerar-me nessas longas tardes de memórias, para compor o retrato clássico, como um doutor Johnson rodeado de estudantes — mas seria vaidade insana ver-me objecto de algum Boswell, e nenhum deles gostaria de saber-se condenado a ser um Burke ou um Goldsmith; já havia melancolia a mais na paisa­gem em si mesma. A comparação é absurda, evidentemente, e agora muito mais, com o Verão instalado em pleno. Sinto-me apenas um velho esperando o rigor do Inverno e, depois, a explosão das mimosas dentro de uns largos meses. A men­ção às mimosas, que aprecio, com os seus aromas adocicados, lembra uma das virtudes do meu folclore minhoto. O doutor Johnson, o maior de entre os literatos ingleses, adoeceria antes de mim, com saudades das Hébrídas - não que lhe faltasse lite­ratura, claro, mas porque é preciso mais do que cuidar da alma para entender a suavíssima mediocridade da província.

Quando chega o final de Agosto, Dona Elaine considera que é preciso voltar a dar uma ordem à casa. Ela tem razão. A pro­víncia fica agora, delicadamente, entregue aos seus ocupantes naturais. Apenas um dos meus sobrinhos, que se apaixonou durante o Verão, anunciou que ficará mais uns dias.

in Revista Notícias Sábado – 26 Agosto 2006