Os velhos, afinal
O desembarque do Mindelo, em Julho de 1832, não entra nas conversas, habituais ou ocasionais, à mesa dos almoços de domingo. A ideia de que as “tropas liberais” tinham atravessado triunfalmente os areais arborizados do actual Mindelo (na antiga Praia dos Ladrões) foi sempre alvo de ressalvas por parte do Doutor Homem, meu pai, que nunca esqueceu o nome da Areosa de Pampelido, onde na verdade teve lugar o desembarque (chama-se agora Praia da Memória) – se tivesse vivido na época, e passado o armistício das guerras civis, ele teria sido um cartista, mas hoje já não se conhece a diferença entre o Duque de Saldanha e o da Terceira. Um dos meus sobrinhos considerou que não tinha utilidade conhecer a diferença entre cartistas e setembristas porque isso eram coisas de outros tempos. Na verdade, a história não se repete sempre da mesma forma e ninguém na família, em seu estado normal e aceitável de juízo, acha decente a ideia de queixar-se da vida. Basta haver retratos dela e que os velhos se interessem pelo assunto, continuando a saber distinguir cartistas e setembristas.
Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. Ele acreditava que esse era o segredo de uma longevidade que se tornou tradicional na família e nunca concedeu margem de manobra à idade, excepto quando, de tempos a tempos, regressava dos funerais. Um funeral, nesses tempos, tinha uma dimensão trágica que não se lhes conhece hoje, porque a morte está vulgarizada como um acontecimento que nos chega pela televisão e no cinema; habituámo-nos.
A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa. O tempo, que consome tudo, é mais doce nos verdes anos, enquanto não há reumatismo nem males das coronárias, mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. As actrizes que se recusam a envelhecer recusam-se também a serem fotografadas para não mostrarem como o tempo é um passageiro infalível da nossa vida. É uma forma, como qualquer outra, de encarar as coisas.
As minhas irmãs e um dos meus cunhados descobriram há anos a virtude do exercício físico e da meditação oriental – e sentem-se felizes. São pacientes e fazem genuflexões, transpiram e podem tocar o pé esquerdo com os dedos da mão direita. Noto pelo seu ar que travam um combate entre iguais e isso comove-me. Esta gente devia ser louvada porque faz um esforço (que eu considero nos limites do sobrenatural, preguiçoso como sou) para continuar a viver com dignidade, se bem que o mundo, no entanto, não lhes responda à altura, enumerando até à exaustão as virtudes da juventude. Torna-se cansativo.
Se pensarmos bem, os velhos não tomam drogas e cometem muito menos crimes, ocupam menos espaço e não fazem tanto barulho, conhecem haver uma diferença entre setembristas e cartistas (o século XIX não foi há tanto tempo) e a maior parte deles não é perigosa para o resto da humanidade. Mas, como mo recordam com alguma vileza, é evidente que não contribuem para a enriquecer a Fazenda pública nem para estabilizar as contas da previdência social e conhecem melhor – distraem-se mais facilmente – as coisas do passado do que as do presente.
Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui.
in Revista Notícias Sábado – 9 Setembro 2006
Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. Ele acreditava que esse era o segredo de uma longevidade que se tornou tradicional na família e nunca concedeu margem de manobra à idade, excepto quando, de tempos a tempos, regressava dos funerais. Um funeral, nesses tempos, tinha uma dimensão trágica que não se lhes conhece hoje, porque a morte está vulgarizada como um acontecimento que nos chega pela televisão e no cinema; habituámo-nos.
A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa. O tempo, que consome tudo, é mais doce nos verdes anos, enquanto não há reumatismo nem males das coronárias, mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. As actrizes que se recusam a envelhecer recusam-se também a serem fotografadas para não mostrarem como o tempo é um passageiro infalível da nossa vida. É uma forma, como qualquer outra, de encarar as coisas.
As minhas irmãs e um dos meus cunhados descobriram há anos a virtude do exercício físico e da meditação oriental – e sentem-se felizes. São pacientes e fazem genuflexões, transpiram e podem tocar o pé esquerdo com os dedos da mão direita. Noto pelo seu ar que travam um combate entre iguais e isso comove-me. Esta gente devia ser louvada porque faz um esforço (que eu considero nos limites do sobrenatural, preguiçoso como sou) para continuar a viver com dignidade, se bem que o mundo, no entanto, não lhes responda à altura, enumerando até à exaustão as virtudes da juventude. Torna-se cansativo.
Se pensarmos bem, os velhos não tomam drogas e cometem muito menos crimes, ocupam menos espaço e não fazem tanto barulho, conhecem haver uma diferença entre setembristas e cartistas (o século XIX não foi há tanto tempo) e a maior parte deles não é perigosa para o resto da humanidade. Mas, como mo recordam com alguma vileza, é evidente que não contribuem para a enriquecer a Fazenda pública nem para estabilizar as contas da previdência social e conhecem melhor – distraem-se mais facilmente – as coisas do passado do que as do presente.
Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui.
in Revista Notícias Sábado – 9 Setembro 2006
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