Um dandy no Porto
O meu avô, administrador de quintas do Douro e de algumas propriedades no Minho, vestia durante o Verão uns fatos claros, grandes demais, providenciados por um alfaiate dos Clérigos. Mandava preparar dois fatos de Verão por ano, que iam juntar-se aos dos anos anteriores; para quem conhecia os hábitos dos burgueses do Porto, é evidente que existia alguma parcimónia. O mesmo acontecia com os fatos de Inverno e, naturalmente, com a chamada meia-estação. A meia-estação era um período turbulento em que tanto podia chover como se sofria a inclemência de algum calor desajustado da sua época. Tendo sobrevivido à chegada dos astronautas à Lua (morreu uns meses depois), atribuía à ganância espacial o desarranjo dos climas e as catástrofes que, periodicamente, antecediam a época das vindimas. Habituado a regular a sua vida pelo mostrador de um relógio de bolso que passou de geração em geração (e pelo pequeno ruído do relógio de sala a que, religiosamente, dava corda todas as noites, de roupão, antes de passar para o quarto), o tempo era para ele uma ideia sem mistérios.
Preocupado em oferecer uma educação cosmopolita e cheia de simpáticas velharias, o meu avô não teve dificuldade em conceder ao velho Doutor Homem, meu pai, na altura com vinte e dois anos, a graça de umas férias inglesas. Essas “férias inglesas”, que ficaram famosas depois, foram a consequência de um velho distúrbio familiar, segundo o qual em Portugal não se aprende grande coisa. Bastava a um Homem cruzar a imaginária linha de fronteira que separava a verdura de Valença da desolação de Tuy, ou atravessar as primeiras montanhas das Astúrias (de comboio), a caminho de Paris, para se transformar num cidadão do mundo. Anos mais tarde, o meu pai confidenciou-me que isso se devia à teimosia dos Homem em aceitar que a Pátria tinha mudado consideravelmente, mais do que podia a compreensão da velha família espalhada pelo Porto, por Atães, por Ponte de Lima e por Viana do Castelo.
O velho Doutor Homem, meu pai, em vésperas de vestir a pele de promissor advogado, especialista em direito bancário, chegou de Londres com uns fatos de corte diferente do habitualmente praticado nos Clérigos – mais afrancesado e, para a época, mais discreto, de tons cinzentos que favoreciam o anonimato ao cruzar a rua. Os padrões escuros eram atravessados por riscas mais claras, cinzentas ou azuis; as gravatas tinham o brilho ousado da seda; os “tweeds” eram, apesar de confortáveis para o rigor do Inverno, discretos e juvenis, bons para todas as ocasiões. É preciso dizer que os Homem foram sempre vaidosos e conservaram as suas roupas como testemunho para as gerações que estavam para chegar. E, para uma família que apreciava as suas temporadas na Foz de então, o guarda-roupa foi, a princípio, mais importante do que a mala de livros transportada de Londres como a relíquia que o Teodorico Raposo queria entregar nas santas mãos da Titi depois da ida a Jerusalém. Ao contrário da perfumada roupa de Mary, imaginada por Eça de Queiroz no seu livro, o que vinha na mala era uma revolução. História, poesia, romance, o “Tristram Shandy” inaugural e vários exemplares do “Times” e do “Telegraph”, que em vão o meu avô tentou comparar com “O Primeiro de Janeiro” da época.
As “férias inglesas”, passadas em casa dos primos de uns proprietários do Pinhão, ficaram famosas. De certo modo, eram uma ameaça constante ao regime de tranquilidade e de devoção à história da família. O avô, que via com estranheza a substituição do velho miguelismo adormecido pela literatura “tory” importada de Londres, tratou, portanto, de casar o meu pai. Antes disso, porém, houve Paris, e Londres de novo. Era, de certo modo, cosmopolitismo a mais. A família percebeu que era melhor confiná-lo às fronteiras da pátria, o que aconteceu sem sobressaltos. Uns anos depois, o velho Doutor Homem, meu pai, herdou o alfaiate dos Clérigos, mas levava-lhe os figurinos, como um “dandy”.
Mas esse vício de atravessar fronteiras manteve-se. Os Homem continuaram a desconfiar que em Portugal não se aprendia grande coisa – e Dona Ester, minha mãe, concordava moderadamente, desde que não a afastassem de casa durante as quadras especiais.
in Revista Notícias Sábado – 12 Agosto 2006
Preocupado em oferecer uma educação cosmopolita e cheia de simpáticas velharias, o meu avô não teve dificuldade em conceder ao velho Doutor Homem, meu pai, na altura com vinte e dois anos, a graça de umas férias inglesas. Essas “férias inglesas”, que ficaram famosas depois, foram a consequência de um velho distúrbio familiar, segundo o qual em Portugal não se aprende grande coisa. Bastava a um Homem cruzar a imaginária linha de fronteira que separava a verdura de Valença da desolação de Tuy, ou atravessar as primeiras montanhas das Astúrias (de comboio), a caminho de Paris, para se transformar num cidadão do mundo. Anos mais tarde, o meu pai confidenciou-me que isso se devia à teimosia dos Homem em aceitar que a Pátria tinha mudado consideravelmente, mais do que podia a compreensão da velha família espalhada pelo Porto, por Atães, por Ponte de Lima e por Viana do Castelo.
O velho Doutor Homem, meu pai, em vésperas de vestir a pele de promissor advogado, especialista em direito bancário, chegou de Londres com uns fatos de corte diferente do habitualmente praticado nos Clérigos – mais afrancesado e, para a época, mais discreto, de tons cinzentos que favoreciam o anonimato ao cruzar a rua. Os padrões escuros eram atravessados por riscas mais claras, cinzentas ou azuis; as gravatas tinham o brilho ousado da seda; os “tweeds” eram, apesar de confortáveis para o rigor do Inverno, discretos e juvenis, bons para todas as ocasiões. É preciso dizer que os Homem foram sempre vaidosos e conservaram as suas roupas como testemunho para as gerações que estavam para chegar. E, para uma família que apreciava as suas temporadas na Foz de então, o guarda-roupa foi, a princípio, mais importante do que a mala de livros transportada de Londres como a relíquia que o Teodorico Raposo queria entregar nas santas mãos da Titi depois da ida a Jerusalém. Ao contrário da perfumada roupa de Mary, imaginada por Eça de Queiroz no seu livro, o que vinha na mala era uma revolução. História, poesia, romance, o “Tristram Shandy” inaugural e vários exemplares do “Times” e do “Telegraph”, que em vão o meu avô tentou comparar com “O Primeiro de Janeiro” da época.
As “férias inglesas”, passadas em casa dos primos de uns proprietários do Pinhão, ficaram famosas. De certo modo, eram uma ameaça constante ao regime de tranquilidade e de devoção à história da família. O avô, que via com estranheza a substituição do velho miguelismo adormecido pela literatura “tory” importada de Londres, tratou, portanto, de casar o meu pai. Antes disso, porém, houve Paris, e Londres de novo. Era, de certo modo, cosmopolitismo a mais. A família percebeu que era melhor confiná-lo às fronteiras da pátria, o que aconteceu sem sobressaltos. Uns anos depois, o velho Doutor Homem, meu pai, herdou o alfaiate dos Clérigos, mas levava-lhe os figurinos, como um “dandy”.
Mas esse vício de atravessar fronteiras manteve-se. Os Homem continuaram a desconfiar que em Portugal não se aprendia grande coisa – e Dona Ester, minha mãe, concordava moderadamente, desde que não a afastassem de casa durante as quadras especiais.
in Revista Notícias Sábado – 12 Agosto 2006
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