Da ignorância
Houve uma altura em que havia muito Beethoven junto do velho gira-discos de Moledo. O piano de Beethoven enterneceu duas gerações de Homem, não podia ser mais, junto com algum Schubert. Para provar que não tinha sobrevivido ao Titanic por pura sorte, alimentei na minha sobrinha, por pura vaidade, a ideia de que era um apreciador de jazz, coisa em que ambos acreditámos durante algum tempo. O meu ouvido assemelha-se às paredes da casa de família em Ponte de Lima: muita surdez e alguns hábitos que não se perdem. Os trompetes sempre despertaram em mim aventuras que nunca aconteceram – a orquestra de Coleman Hawkins, nascido com o século, esteve ligada às pequenas alegrias da minha vida: irregulares, melodiosas, uma espécie de barroco do jazz.
Não castigo o leitor com a minha ignorância, que me basta a mim próprio para corar de vergonha. O mundo da minha adolescência, que ainda lembro, era muito mais silencioso do que o actual. Há momentos irrepetíveis, que hoje não têm sentido: ligar o aparelho de rádio, sintonizar uma estação de rádio para procurar um programa em especial, virar um disco no aparelho, mudar a rotação no gira-discos ou accionar a manivela de uma grafonola, por exemplo. O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de uns discos com sambas brasileiros, acompanhados de orquestra a rigor, semelhantes às grandes orquestras americanas – e chegou a coleccionar discos de Dick Farney e de Cartola. Esses objectos vagamente arqueológicos já não existem, tal como o primeiro canteiro de hibiscos originais, que desapareceu com a idade. De certo modo, havia um cerimonial ligado à música: uma hora, uma solenidade, um auditório, uma novidade. Todo o resto da nossa vida, minha e do meu pai, foi dedicado aos livros – e ao escritório de advocacia mais ou menos familiar, onde entrei a contragosto, e de onde me retirei para Moledo, arrastando comigo os fins-de-semana da família, álbuns de fotografia e uma biblioteca em busca de organização. Apenas se mantêm os fins-de-semana e os álbuns de fotografia.
A biblioteca nunca teve ordem possível e compreendi que dar-lhe uma ordem demasiado exacta, profissional, era desrespeitar o espírito aventuroso do Doutor Homem, meu pai, que apenas concedia em organizar uma pequena parte dos seus livros – justamente, os seus autores de eleição, que iam de Disraeli a Yeats com alguns apeadeiros em poesia romântica inglesa e nas biografias de grandes homens. Pensando bem, a minha contribuição para essa biblioteca apenas veio envelhecê-la e torná-la menos cosmopolita; não a arejei com muitos novos autores, não a enriqueci com o chamado “pensamento contemporâneo” nem com o “romance moderno”, ignorei o que havia a ignorar. Ou seja, ilustrei-a com a minha ignorância e com a soberba de um velho cuja curiosidade tem limites muito estreitos.
Essa limitação tem vantagens. A minha sobrinha, enquanto me acompanhava às esplanadas da praça de Cerveira, onde costumo ir todos os meses como pretexto para almoçar onde a idade já me não perdoa, acha estranho que muitas das coisas de hoje não me interessem. O que não me interessa eu não conheço. O que conheço tento conhecer melhor. Passou o meu tempo de fazer escolhas e de exercitar a paciência deste pobre homem do Minho. As pessoas não são mais felizes por coleccionarem tantos títulos como o dr. Prado Coelho. Há, por certo, alguma virtude em não ser assim. Por mim, sou-o por hábito, por génio e por preguiça.
Quando o meu médico de Viana do Castelo recebe a minha visita periódica para vigiar os rins e os males cardíacos, tenta esconder-me as misérias. Eu compreendo-o. É um médico de antigamente, sabe que o conforto da alma é um bem muito superior ao conhecimento geral do universo.
in Revista Notícias Sábado – 5 Agosto 2006
Não castigo o leitor com a minha ignorância, que me basta a mim próprio para corar de vergonha. O mundo da minha adolescência, que ainda lembro, era muito mais silencioso do que o actual. Há momentos irrepetíveis, que hoje não têm sentido: ligar o aparelho de rádio, sintonizar uma estação de rádio para procurar um programa em especial, virar um disco no aparelho, mudar a rotação no gira-discos ou accionar a manivela de uma grafonola, por exemplo. O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de uns discos com sambas brasileiros, acompanhados de orquestra a rigor, semelhantes às grandes orquestras americanas – e chegou a coleccionar discos de Dick Farney e de Cartola. Esses objectos vagamente arqueológicos já não existem, tal como o primeiro canteiro de hibiscos originais, que desapareceu com a idade. De certo modo, havia um cerimonial ligado à música: uma hora, uma solenidade, um auditório, uma novidade. Todo o resto da nossa vida, minha e do meu pai, foi dedicado aos livros – e ao escritório de advocacia mais ou menos familiar, onde entrei a contragosto, e de onde me retirei para Moledo, arrastando comigo os fins-de-semana da família, álbuns de fotografia e uma biblioteca em busca de organização. Apenas se mantêm os fins-de-semana e os álbuns de fotografia.
A biblioteca nunca teve ordem possível e compreendi que dar-lhe uma ordem demasiado exacta, profissional, era desrespeitar o espírito aventuroso do Doutor Homem, meu pai, que apenas concedia em organizar uma pequena parte dos seus livros – justamente, os seus autores de eleição, que iam de Disraeli a Yeats com alguns apeadeiros em poesia romântica inglesa e nas biografias de grandes homens. Pensando bem, a minha contribuição para essa biblioteca apenas veio envelhecê-la e torná-la menos cosmopolita; não a arejei com muitos novos autores, não a enriqueci com o chamado “pensamento contemporâneo” nem com o “romance moderno”, ignorei o que havia a ignorar. Ou seja, ilustrei-a com a minha ignorância e com a soberba de um velho cuja curiosidade tem limites muito estreitos.
Essa limitação tem vantagens. A minha sobrinha, enquanto me acompanhava às esplanadas da praça de Cerveira, onde costumo ir todos os meses como pretexto para almoçar onde a idade já me não perdoa, acha estranho que muitas das coisas de hoje não me interessem. O que não me interessa eu não conheço. O que conheço tento conhecer melhor. Passou o meu tempo de fazer escolhas e de exercitar a paciência deste pobre homem do Minho. As pessoas não são mais felizes por coleccionarem tantos títulos como o dr. Prado Coelho. Há, por certo, alguma virtude em não ser assim. Por mim, sou-o por hábito, por génio e por preguiça.
Quando o meu médico de Viana do Castelo recebe a minha visita periódica para vigiar os rins e os males cardíacos, tenta esconder-me as misérias. Eu compreendo-o. É um médico de antigamente, sabe que o conforto da alma é um bem muito superior ao conhecimento geral do universo.
in Revista Notícias Sábado – 5 Agosto 2006
<< Home