O crespúsculo de Moledo
Os carros ficam estacionados perto dos pinhais e, lentamente, a partir das cinco ou seis da tarde, debandam para a estrada principal ou, agora, para a auto-estrada que segue para o Porto; em Setembro isso significa o fim da "época balnear". Para o temperamento de um minhoto, o domingo à tarde é um final de romaria, uma despedida cheia de camisas brancas arregaçadas e de sapatos ligeiramente cobertos de pó. Lembro-me dos homens de colete, sentados nos muros, sinalizando o domingo que acaba em Cerveira, em Ponte de Lima, nos Arcos.
Moledo, no entanto, não tem nada de rural. Moledo significa mar. E, portanto, é justíssima a expressão "época balnear". A partir desta semana, na verdade, encerra-se o plano meteorológico do Verão mesmo que o calor persista e a vinda das chuvas seja considerada uma bênção. Dona Elaine acha que as chuvas nesta altura são um perigo para as videiras e as vindimas, mas o meu almanaque precisa delas depois de outro Verão inclemente. Passada a temporada do iodo, como eu chamo à época em que os areais são invadidos por famílias bronzeadas e adolescentes ginasticados, Moledo agradece uma chuva que limpe os pinhais e faça assentar a poeira.
Estas observações acontecem-me todos os anos, mas têm alguma inocência. Às vezes, a meteorologia parece-me um milagre – uma espécie de acontecimento que prova que o universo está ou completamente desordenado ou bem feito. O velho doutor Homem, meu pai, que era um homem sensato, acreditava que o universo estava bem feito – eu limitei-me a aceitar essa evidência como se aceitam as trovoadas repentinas de Verão ou as derradeiras geadas de Março. Na cabeça dos velhos, a meteorologia é a única ciência cuja utilidade não precisa de ser demonstrada, juntamente com a cardiologia e a "clínica geral".
Tudo o resto pode acontecer com ou sem regularidade, com ou sem justificação. Por mim, tendo em conta a minha tradicional incapacidade de estabelecer contactos com os semelhantes, a meteorologia é um assunto recorrente; os portugueses apreciam-na e diariamente prestam-Ihe as mais doces homenagens.
Na polémica política sobre evolucionismo e criacionismo, por exemplo, mantenho-me nas margens do mais irredutível cepticismo: ignoro como chegámos aqui. Isto, assegura-me a minha sobrinha Maria Luísa, constitui uma ameaça à imagem que os meus timoratos leitores têm do mais reaccionário dos cronistas de Moledo. Ela, que vota no Bloco de Esquerda porque tem simpatias pelo ar evangelizador do dr. Louçã, acredita que o mundo está dividido entre a velha e a nova ordem e que não há razões para duvidar dessa geometria. Os Homem, pelo contrário, habituaram-se a duvidar – daí provém não só o seu cepticismo e mesmo o seu pessimismo, mas, também, e em maior grau, a sua hipocrisia permissiva cheia de toques misantropos. Explica-se facilmente o fenómeno: uma coisa é duvidar intimamente; outra, menos pacífica, é manifestar as nossas dúvidas com a serenidade de um trovão (cá vêm os fenómenos meteorológicos). Ter uma dúvida não significa expô-la, e ao longo dos últimos sessenta anos tenho abundantes páginas do calendário semeadas de dúvidas exangues, de questões com a verdade, de problemas de fé – mas daí não se infere que a dúvida, o cepticismo e o pessimismo natural sejam o norte da minha bússola.
Há sempre uma contradição entre o que se diz e o que, realmente, nos acontece na intimidade. A maneira como se chega ao "que se diz" é geralmente tortuosa e angustiada, mas é necessário manter um discreto manto de pudor sobre esse maquinismo que, se não faz de nós pessoas melhores, pelo menos nos habilita a não sermos crucificados em público por qualquer distracção que revele toda a verdade sobre o nosso carácter. Nessa matéria, a diferença entre a minha sobrinha Maria Luísa (e o leitor é testemunha da minha admiração por ela) e o mais reaccionário dos cronistas de Moledo é, justamente, a quantidade de palavras que retiramos do dicionário para falar do milagroso crepúsculo de Moledo. Eu admiro-lhe a comovida capacidade de falar sobre o assunto. Ela admira-se com o silêncio que lhe devoto. Raramente suspeita da perturbação que deixo atrás, pelo caminho, quando vejo o céu escurecer sobre a Ínsua.
in Revista Notícias Sábado – 16 Setembro 2006
Moledo, no entanto, não tem nada de rural. Moledo significa mar. E, portanto, é justíssima a expressão "época balnear". A partir desta semana, na verdade, encerra-se o plano meteorológico do Verão mesmo que o calor persista e a vinda das chuvas seja considerada uma bênção. Dona Elaine acha que as chuvas nesta altura são um perigo para as videiras e as vindimas, mas o meu almanaque precisa delas depois de outro Verão inclemente. Passada a temporada do iodo, como eu chamo à época em que os areais são invadidos por famílias bronzeadas e adolescentes ginasticados, Moledo agradece uma chuva que limpe os pinhais e faça assentar a poeira.
Estas observações acontecem-me todos os anos, mas têm alguma inocência. Às vezes, a meteorologia parece-me um milagre – uma espécie de acontecimento que prova que o universo está ou completamente desordenado ou bem feito. O velho doutor Homem, meu pai, que era um homem sensato, acreditava que o universo estava bem feito – eu limitei-me a aceitar essa evidência como se aceitam as trovoadas repentinas de Verão ou as derradeiras geadas de Março. Na cabeça dos velhos, a meteorologia é a única ciência cuja utilidade não precisa de ser demonstrada, juntamente com a cardiologia e a "clínica geral".
Tudo o resto pode acontecer com ou sem regularidade, com ou sem justificação. Por mim, tendo em conta a minha tradicional incapacidade de estabelecer contactos com os semelhantes, a meteorologia é um assunto recorrente; os portugueses apreciam-na e diariamente prestam-Ihe as mais doces homenagens.
Na polémica política sobre evolucionismo e criacionismo, por exemplo, mantenho-me nas margens do mais irredutível cepticismo: ignoro como chegámos aqui. Isto, assegura-me a minha sobrinha Maria Luísa, constitui uma ameaça à imagem que os meus timoratos leitores têm do mais reaccionário dos cronistas de Moledo. Ela, que vota no Bloco de Esquerda porque tem simpatias pelo ar evangelizador do dr. Louçã, acredita que o mundo está dividido entre a velha e a nova ordem e que não há razões para duvidar dessa geometria. Os Homem, pelo contrário, habituaram-se a duvidar – daí provém não só o seu cepticismo e mesmo o seu pessimismo, mas, também, e em maior grau, a sua hipocrisia permissiva cheia de toques misantropos. Explica-se facilmente o fenómeno: uma coisa é duvidar intimamente; outra, menos pacífica, é manifestar as nossas dúvidas com a serenidade de um trovão (cá vêm os fenómenos meteorológicos). Ter uma dúvida não significa expô-la, e ao longo dos últimos sessenta anos tenho abundantes páginas do calendário semeadas de dúvidas exangues, de questões com a verdade, de problemas de fé – mas daí não se infere que a dúvida, o cepticismo e o pessimismo natural sejam o norte da minha bússola.
Há sempre uma contradição entre o que se diz e o que, realmente, nos acontece na intimidade. A maneira como se chega ao "que se diz" é geralmente tortuosa e angustiada, mas é necessário manter um discreto manto de pudor sobre esse maquinismo que, se não faz de nós pessoas melhores, pelo menos nos habilita a não sermos crucificados em público por qualquer distracção que revele toda a verdade sobre o nosso carácter. Nessa matéria, a diferença entre a minha sobrinha Maria Luísa (e o leitor é testemunha da minha admiração por ela) e o mais reaccionário dos cronistas de Moledo é, justamente, a quantidade de palavras que retiramos do dicionário para falar do milagroso crepúsculo de Moledo. Eu admiro-lhe a comovida capacidade de falar sobre o assunto. Ela admira-se com o silêncio que lhe devoto. Raramente suspeita da perturbação que deixo atrás, pelo caminho, quando vejo o céu escurecer sobre a Ínsua.
in Revista Notícias Sábado – 16 Setembro 2006
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