Das virtudes do iodo
Escrevi na semana passada que os Homem do princípio do século passado viajavam bastante (para os costumes domésticos da época) e tinham o vício de atravessar fronteiras. Esse vício estava alicerçado na convicção, certamente defeituosa, de que Portugal era pouco dado a virtudes gerais – o velho Doutor Homem, meu pai, acreditava que até para a temporada de praia se deveriam procurar ares distantes. Nesses tempos, viajar era uma obrigação física e moral. Compreendo, a esta distância, o que ele devia sentir ao partir de comboio e ao regressar ao Porto. Estávamos nos anos trinta, quarenta e cinquenta. Eu também tive a minha temporada de “dandy”, mas muito mais comedida.
Quando chegou a minha altura de viajar na idade madura, regredi em relação aos hábitos criados pela eventual prosperidade da família, que achava que a viagem não era um luxo. Praticamente, amadureci com a idade que hoje tenho; sofro desse atavismo regional que leva certos portugueses a contentarem-se com a sua terra e o conhecimento da sua paisagem. A minha imaginação de adolescente ainda é literária – imagino o litoral inglês, mas nunca estive em Penzance (como o meu pai, que, portanto, conheceu a Foz inglesa antes de haver a Foz inglesa – tal é a semelhança com Penzance). O Minho converteu-me à bonomia e aos seus vícios. Viver em Moledo requer uma disciplina que se colhe na antiguidade: contentar-se com pouco, esperar que o Outono venha interromper o Verão, dedicar-se às histórias de família, esperar visitas.
O Verão interrompe esse ciclo de tranquilidade que só se vive hoje nos romances quase bucólicos de Mrs. Trollope. Moledo transforma-se numa academia cujos pares visitam a praia em busca do iodo de outras eras. O iodo é o meu mito pessoal e recomendo-o como forma de abreviar conversas sobre o que fazer durante “as férias de Verão”; a menção ao iodo transporta consigo um enigma que poucos sabem decifrar, mas a mim serve-me como argumento. Quando parte da família começou, no Verão, a rumar ao Algarve ou a outras paragens meridionais, abaixo do Equador ou na sua proximidade, eu insistia nas qualidades das praias do Minho. “E que qualidades são essas?” O iodo. Tudo se resumia ao iodo. A menção do iodo calava todas as dúvidas. Repousante, vivificante para os pulmões e doenças respiratórias, o reumatismo, os problemas de pele e os males de amor, o iodo era, para o Verão, o que as sulfamidas e o mercurocromo deviam ser para ferimentos em geral.
O meu argumento foi válido por uma ou duas décadas, durante as quais atormentei o desejo de parte da família se libertar da obrigação de inaugurar e concluir a época balnear nos areais de Moledo. Com o tempo, o argumento perdeu força. Apenas a minha sobrinha Maria Luísa, contra todas as expectativas, continuou a marcar presença estival naquilo que, durante o resto do ano, é conhecido como o eremitério de Moledo. Intimamente, ela sabe que Moledo é o que resta de uma civilização que procurava alimentar com mitos a recusa dos tempos modernos. Os velhos, como eu, e os novos, entendem-se nessa recusa que, às vezes, se parece bastante com indiferença. No fundo, é uma tradição familiar que atravessa os séculos, cheia de coisas ultramontanas, ironias, tragédias, misantropias e procura do sossego quer nos arvoredos do litoral, quer nas penumbras da velha casa de Ponte de Lima, onde se mantém pendurado a famosa cópia do retrato do senhor D. Miguel.
Os meus sobrinhos, passada a idade em que apenas utilizavam o pequeno pinhal em cerimónias rituais para fumar haxixe, descobriram também as virtudes de Moledo. Apenas os seus pais permanecem fiéis ao cosmopolitismo dos tempos correntes, partindo em viagem com destino a aeroportos cheios de malas perdidas e horários desrespeitados.
Moledo permanece, sitiada diante do mar, e enquanto não arderem as encostas de pinhais e de velhos carvalhos, lá nas alturas. Os sobrinhos vêm para apreciar uma raridade de museu – um tio que, para além de se fingir tolerante, os senta à mesa e não os entende totalmente. Ao fim da tarde e ao início da manhã (quando a maioria deles ainda dorme), não acham estranha a minha palestra sobre as virtudes do iodo. É uma excentricidade que desculpam e aceitam. Quando perdemos uma excentricidade, perdemos aquilo que nos faz continuar vivos no meio das pessoas como nós. Eles entendem isso.
in Revista Notícias Sábado – 19 Agosto 2006
Quando chegou a minha altura de viajar na idade madura, regredi em relação aos hábitos criados pela eventual prosperidade da família, que achava que a viagem não era um luxo. Praticamente, amadureci com a idade que hoje tenho; sofro desse atavismo regional que leva certos portugueses a contentarem-se com a sua terra e o conhecimento da sua paisagem. A minha imaginação de adolescente ainda é literária – imagino o litoral inglês, mas nunca estive em Penzance (como o meu pai, que, portanto, conheceu a Foz inglesa antes de haver a Foz inglesa – tal é a semelhança com Penzance). O Minho converteu-me à bonomia e aos seus vícios. Viver em Moledo requer uma disciplina que se colhe na antiguidade: contentar-se com pouco, esperar que o Outono venha interromper o Verão, dedicar-se às histórias de família, esperar visitas.
O Verão interrompe esse ciclo de tranquilidade que só se vive hoje nos romances quase bucólicos de Mrs. Trollope. Moledo transforma-se numa academia cujos pares visitam a praia em busca do iodo de outras eras. O iodo é o meu mito pessoal e recomendo-o como forma de abreviar conversas sobre o que fazer durante “as férias de Verão”; a menção ao iodo transporta consigo um enigma que poucos sabem decifrar, mas a mim serve-me como argumento. Quando parte da família começou, no Verão, a rumar ao Algarve ou a outras paragens meridionais, abaixo do Equador ou na sua proximidade, eu insistia nas qualidades das praias do Minho. “E que qualidades são essas?” O iodo. Tudo se resumia ao iodo. A menção do iodo calava todas as dúvidas. Repousante, vivificante para os pulmões e doenças respiratórias, o reumatismo, os problemas de pele e os males de amor, o iodo era, para o Verão, o que as sulfamidas e o mercurocromo deviam ser para ferimentos em geral.
O meu argumento foi válido por uma ou duas décadas, durante as quais atormentei o desejo de parte da família se libertar da obrigação de inaugurar e concluir a época balnear nos areais de Moledo. Com o tempo, o argumento perdeu força. Apenas a minha sobrinha Maria Luísa, contra todas as expectativas, continuou a marcar presença estival naquilo que, durante o resto do ano, é conhecido como o eremitério de Moledo. Intimamente, ela sabe que Moledo é o que resta de uma civilização que procurava alimentar com mitos a recusa dos tempos modernos. Os velhos, como eu, e os novos, entendem-se nessa recusa que, às vezes, se parece bastante com indiferença. No fundo, é uma tradição familiar que atravessa os séculos, cheia de coisas ultramontanas, ironias, tragédias, misantropias e procura do sossego quer nos arvoredos do litoral, quer nas penumbras da velha casa de Ponte de Lima, onde se mantém pendurado a famosa cópia do retrato do senhor D. Miguel.
Os meus sobrinhos, passada a idade em que apenas utilizavam o pequeno pinhal em cerimónias rituais para fumar haxixe, descobriram também as virtudes de Moledo. Apenas os seus pais permanecem fiéis ao cosmopolitismo dos tempos correntes, partindo em viagem com destino a aeroportos cheios de malas perdidas e horários desrespeitados.
Moledo permanece, sitiada diante do mar, e enquanto não arderem as encostas de pinhais e de velhos carvalhos, lá nas alturas. Os sobrinhos vêm para apreciar uma raridade de museu – um tio que, para além de se fingir tolerante, os senta à mesa e não os entende totalmente. Ao fim da tarde e ao início da manhã (quando a maioria deles ainda dorme), não acham estranha a minha palestra sobre as virtudes do iodo. É uma excentricidade que desculpam e aceitam. Quando perdemos uma excentricidade, perdemos aquilo que nos faz continuar vivos no meio das pessoas como nós. Eles entendem isso.
in Revista Notícias Sábado – 19 Agosto 2006
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