O romance de uma vida
Aconteceu num destes sábados de Verão, disponíveis para a sesta. Os velhos não dormem a sesta, mas apreciam a sesta dos outros. Ao acordar da sua, recostada numa poltrona que ficará na varanda até terminar os seus dias de existência confortável, a minha sobrinha declarou achar que eu devia escrever um romance.
Esta ideia de que um romance se escreve quando se tem uma vida para contar parece justa e agradável à vista, mas, na verdade, os grandes romances entretêm-se mais com a vida dos outros do que com a dos próprios autores. Eu não saberia por onde começar e seria frequentemente assaltado por vários dos meus complexos cristãos acerca dos sentimentos que se devem ter sobre o mundo – e sobre os outros. E o romance ficaria estragado. Praticamente, sou um moralista, que é o que menos convém a um romancista. Fui habituado a ler Camilo e o bruxo de Seide é o meu modelo de escritor, criticável, cheio de deficiências de carácter, de invejas, de ressentimentos e de maus sentimentos. Tê-lo-ia de boa vontade à minha mesa, gostaria de convidá-lo. Mas isso não me basta. Sou, de facto, um botânico experimental e amador, um coleccionador de hibiscos; a arte do romance exige mais ressentimento do que o meu, e mais desejo de vingança, e mais conhecimento do mundo. Além de um temperamento trágico que nunca consegui reter.
O velho Doutor Homem, meu pai, tinha pelo romance um desprezo discreto e morigerado. Ele atribuía isso ao facto de, por distracção, se ter fixado na palavra “gentleman” no título de “The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, quando passeava o seu ócio numa livraria de Londres. O meu pai, que tinha lido o “Quixote” e se compenetrara da importância de “Pantagruel”, ficou saciado para a vida inteira ao ler “Tristram Shandy”, como se não precisasse de ler outro livro. Partilhei do seu entusiasmo como se se tratasse de uma Bíblia. Na verdade, li-o toda a vida. E lendo-o durante toda a vida, li nele todos os livros que comenta.
A minha sobrinha acha que eu devia escrever um romance por ter coisas para contar. Não basta: nem tudo é matéria de romance. Eu perder-me-ia entre episódios galantes e recordações que revelariam uma vida desinteressante e vazia das emoções extraordinárias que o leitor procura para alegrar a sua existência ou para dispor na sua memória como exemplo. E, ao virar de um capítulo (se eu escrevesse o primeiro, sequer), estaria reduzido às lembranças vagas que têm acompanhado estas crónicas. O romancista, suponho eu, tem de possui aquele ar arguto e irónico de Lawrence Sterne sem que nele se detecte o bacilo da tuberculose ou a tortura de uma ideia caminhando entre o labirinto de manuscritos, além de garantir uma dose bastante invulnerável de misantropia. Se os Homem se tornaram, com a idade, especialistas numa amável e discreta misantropia, não lhes sobrou talento para se dedicarem às artes.
A nossa cidade é o velho Porto que já não existe. A nossa província é o Minho vetusto, garrido, explodindo no Verão em romarias onde raramente fomos encontrados. A nossa biblioteca é um misto de teimosias do velho Doutor Homem, meu pai, e da luta contra a minha ignorância e a minha preguiça.
A minha sobrinha, que vive e trabalha em Braga, uma cidade de romance durante os tempos de Camilo, não ignora as minhas objecções mas atribui-lhes um carácter que não têm; ela supõe que se trata de modéstia, qualidade de que nenhum Homem alguma vez pôde vangloriar-se. Mesmo no recato das reuniões familiares, os Homem julgaram-se sempre o centro do mundo. De geração para geração, mantivemos a decoração da casa de Ponte de Lima e conservámos hábitos sem explicação que julgo servirem apenas para reunir a maledicência familiar em torno da mesa de domingo. “Há para aí tanto escritor sem nada para contar”, observa ela, tentando comover-me ou elogiar-me. Defeito de juventude: ela não conhece o poder extraordinário da preguiça, que, não sendo fonte de virtudes teologais, é um vício deste Matusalém minhoto.
in Revista Notícias Sábado – 29 Julho 2006
Esta ideia de que um romance se escreve quando se tem uma vida para contar parece justa e agradável à vista, mas, na verdade, os grandes romances entretêm-se mais com a vida dos outros do que com a dos próprios autores. Eu não saberia por onde começar e seria frequentemente assaltado por vários dos meus complexos cristãos acerca dos sentimentos que se devem ter sobre o mundo – e sobre os outros. E o romance ficaria estragado. Praticamente, sou um moralista, que é o que menos convém a um romancista. Fui habituado a ler Camilo e o bruxo de Seide é o meu modelo de escritor, criticável, cheio de deficiências de carácter, de invejas, de ressentimentos e de maus sentimentos. Tê-lo-ia de boa vontade à minha mesa, gostaria de convidá-lo. Mas isso não me basta. Sou, de facto, um botânico experimental e amador, um coleccionador de hibiscos; a arte do romance exige mais ressentimento do que o meu, e mais desejo de vingança, e mais conhecimento do mundo. Além de um temperamento trágico que nunca consegui reter.
O velho Doutor Homem, meu pai, tinha pelo romance um desprezo discreto e morigerado. Ele atribuía isso ao facto de, por distracção, se ter fixado na palavra “gentleman” no título de “The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, quando passeava o seu ócio numa livraria de Londres. O meu pai, que tinha lido o “Quixote” e se compenetrara da importância de “Pantagruel”, ficou saciado para a vida inteira ao ler “Tristram Shandy”, como se não precisasse de ler outro livro. Partilhei do seu entusiasmo como se se tratasse de uma Bíblia. Na verdade, li-o toda a vida. E lendo-o durante toda a vida, li nele todos os livros que comenta.
A minha sobrinha acha que eu devia escrever um romance por ter coisas para contar. Não basta: nem tudo é matéria de romance. Eu perder-me-ia entre episódios galantes e recordações que revelariam uma vida desinteressante e vazia das emoções extraordinárias que o leitor procura para alegrar a sua existência ou para dispor na sua memória como exemplo. E, ao virar de um capítulo (se eu escrevesse o primeiro, sequer), estaria reduzido às lembranças vagas que têm acompanhado estas crónicas. O romancista, suponho eu, tem de possui aquele ar arguto e irónico de Lawrence Sterne sem que nele se detecte o bacilo da tuberculose ou a tortura de uma ideia caminhando entre o labirinto de manuscritos, além de garantir uma dose bastante invulnerável de misantropia. Se os Homem se tornaram, com a idade, especialistas numa amável e discreta misantropia, não lhes sobrou talento para se dedicarem às artes.
A nossa cidade é o velho Porto que já não existe. A nossa província é o Minho vetusto, garrido, explodindo no Verão em romarias onde raramente fomos encontrados. A nossa biblioteca é um misto de teimosias do velho Doutor Homem, meu pai, e da luta contra a minha ignorância e a minha preguiça.
A minha sobrinha, que vive e trabalha em Braga, uma cidade de romance durante os tempos de Camilo, não ignora as minhas objecções mas atribui-lhes um carácter que não têm; ela supõe que se trata de modéstia, qualidade de que nenhum Homem alguma vez pôde vangloriar-se. Mesmo no recato das reuniões familiares, os Homem julgaram-se sempre o centro do mundo. De geração para geração, mantivemos a decoração da casa de Ponte de Lima e conservámos hábitos sem explicação que julgo servirem apenas para reunir a maledicência familiar em torno da mesa de domingo. “Há para aí tanto escritor sem nada para contar”, observa ela, tentando comover-me ou elogiar-me. Defeito de juventude: ela não conhece o poder extraordinário da preguiça, que, não sendo fonte de virtudes teologais, é um vício deste Matusalém minhoto.
in Revista Notícias Sábado – 29 Julho 2006
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