Um sabor do passado
Quando a União Indiana decretou o fim da presença portuguesa nos territórios daquela parte do planisfério, o velho Doutor Homem, meu pai, não se limitou a mostrar-se magoado. Ouvindo a rádio, lendo os jornais, desdobrando sobre a mesa da sala de jantar os mapas que mostrariam a pequena catástrofe do império, a família achou – à primeira vista – que estava iminente o fim do mundo. No entanto, ainda era cedo e não foi dessa vez que a catástrofe atingiu o nível do apocalipse.
No conjunto das hecatombes familiares, geralmente circunscritas ao pequeno universo da época (quando ainda não "tínhamos" chegado à Lua), a perda das províncias da índia foi apenas a confirmação de todo o pessimismo habitual desde que o senhor D. João VI regressou do Brasil em 1821. Por isso, o velho causídico limitou-se a dizer que tudo estava já previsto desde que, atravessando o longínquo Ipiranga (se é que foi assim), D. Pedro declarou encerrada a questão colonial por esses tempos – perder o Brasil significava, no fim de contas, perder apenas metade do mundo.
O império foi-nos sempre caro desde que Tristão da Cunha foi a Roma em representação ao Papa. Os luxos pagam-se e Portugal não podia ficar imune à inflação da História. Não se compreendia, aliás, que o doutor Salazar, com a sua teologia doméstica, a sua indumentária e a sua intuição sobre o funcionamento das contas públicas, não tenha entendido esse preço que a civilização vinha cobrar.
O velho doutor Homem, meu pai, compreendia, à medida que chegavam as notícias sobre a grandeza das cidades coloniais (Lourenço Marques, a pérola do Índico, a Beira, Nova Lisboa, Luanda), que a pátria estava a ser ultrapassada pelas suas colónias. Manuseando os princípios do direito bancário e lendo Disraeli (à parte ter sido visita do doutor Cunha Leal), o velho doutor Homem via nesse luxo africano, tão evidente quanto necessário, uma tentativa justa de vingar a pequenez da modesta metrópole europeia.
Poucas pessoas de família visitaram o império em África – o Brasil bastou-nos para deslumbramento e para juntar um pouco de lenda e de devassidão à riqueza do nosso tio pernambucano que veio retirar-se em Afife. Mas a vista das avenidas monumentais de Luanda e de Lourenço Marques (imagens que poupavam a vista de outras modéstias), bem como as histórias de alguma grandeza de vida, mostrava que havia uma diferença entre a virtuosa "aura mediocritas" do ditador e os costumes do vasto império.
A falar verdade, recuando no tempo, Portugal era um mundo ordenado e silencioso, a quem causavam estranheza a inclemência dos trópicos e os suores africanos. Em chegando a África, suponho que a alma portuguesa continuava a ser portuguesa, mas, de facto, deixava de ser lusitana.
Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendimento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado independente. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regressaram ao poder em 1974.
Nessa época, em 1961, eu aprendera o 'fox trot' (que já não se dançava) e queria ir a Paris. Nem uma coisa nem outra foram especialmente difíceis. A perda de Goa, de Damão e de Diu custou mais um pouco ao orgulho doméstico, mas era disfarçável diante de Paris, do antiquado 'fox trot'. No final desse ano, o ano em que o russo Gagarin entrou na história do espaço e em que faleceu a tia Benedita, o velho doutor Homem considerava que seria uma inutilidade enviar para a morte os quatro mil soldados portugueses estacionados no Indostão. Era um princípio de humanidade.
Ao almoço de domingo, houve caril. Uma senhora de Vila Praia de Âncora vem cozinhá-lo de vez em quando, a pedido de dona Elaine. A sua família, que tem raízes em Goa, possui a sua própria receita, que se perde no tempo e no paladar. A melancolia do império, às vezes, dilui-se perto do estômago – se Camilo não tivesse lembrado que o coração e a cabeça lhe estão também ligados.
in Revista Notícias Sábado – 22 Julho 2006
No conjunto das hecatombes familiares, geralmente circunscritas ao pequeno universo da época (quando ainda não "tínhamos" chegado à Lua), a perda das províncias da índia foi apenas a confirmação de todo o pessimismo habitual desde que o senhor D. João VI regressou do Brasil em 1821. Por isso, o velho causídico limitou-se a dizer que tudo estava já previsto desde que, atravessando o longínquo Ipiranga (se é que foi assim), D. Pedro declarou encerrada a questão colonial por esses tempos – perder o Brasil significava, no fim de contas, perder apenas metade do mundo.
O império foi-nos sempre caro desde que Tristão da Cunha foi a Roma em representação ao Papa. Os luxos pagam-se e Portugal não podia ficar imune à inflação da História. Não se compreendia, aliás, que o doutor Salazar, com a sua teologia doméstica, a sua indumentária e a sua intuição sobre o funcionamento das contas públicas, não tenha entendido esse preço que a civilização vinha cobrar.
O velho doutor Homem, meu pai, compreendia, à medida que chegavam as notícias sobre a grandeza das cidades coloniais (Lourenço Marques, a pérola do Índico, a Beira, Nova Lisboa, Luanda), que a pátria estava a ser ultrapassada pelas suas colónias. Manuseando os princípios do direito bancário e lendo Disraeli (à parte ter sido visita do doutor Cunha Leal), o velho doutor Homem via nesse luxo africano, tão evidente quanto necessário, uma tentativa justa de vingar a pequenez da modesta metrópole europeia.
Poucas pessoas de família visitaram o império em África – o Brasil bastou-nos para deslumbramento e para juntar um pouco de lenda e de devassidão à riqueza do nosso tio pernambucano que veio retirar-se em Afife. Mas a vista das avenidas monumentais de Luanda e de Lourenço Marques (imagens que poupavam a vista de outras modéstias), bem como as histórias de alguma grandeza de vida, mostrava que havia uma diferença entre a virtuosa "aura mediocritas" do ditador e os costumes do vasto império.
A falar verdade, recuando no tempo, Portugal era um mundo ordenado e silencioso, a quem causavam estranheza a inclemência dos trópicos e os suores africanos. Em chegando a África, suponho que a alma portuguesa continuava a ser portuguesa, mas, de facto, deixava de ser lusitana.
Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendimento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado independente. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regressaram ao poder em 1974.
Nessa época, em 1961, eu aprendera o 'fox trot' (que já não se dançava) e queria ir a Paris. Nem uma coisa nem outra foram especialmente difíceis. A perda de Goa, de Damão e de Diu custou mais um pouco ao orgulho doméstico, mas era disfarçável diante de Paris, do antiquado 'fox trot'. No final desse ano, o ano em que o russo Gagarin entrou na história do espaço e em que faleceu a tia Benedita, o velho doutor Homem considerava que seria uma inutilidade enviar para a morte os quatro mil soldados portugueses estacionados no Indostão. Era um princípio de humanidade.
Ao almoço de domingo, houve caril. Uma senhora de Vila Praia de Âncora vem cozinhá-lo de vez em quando, a pedido de dona Elaine. A sua família, que tem raízes em Goa, possui a sua própria receita, que se perde no tempo e no paladar. A melancolia do império, às vezes, dilui-se perto do estômago – se Camilo não tivesse lembrado que o coração e a cabeça lhe estão também ligados.
in Revista Notícias Sábado – 22 Julho 2006
<< Home