Sobre o poder e quem chega lá
Uma
família conservadora e tradicional: foi isso que sempre fomos, em maior ou
menor grau. Nunca recebemos comendas nem favores; habituámo-nos a viver
conforme as obrigações do destino, o que resultou numa obra ligeiramente
cómica, com tanto de burlesco como de – por vezes – inexplicável. Advirto em
várias ocasiões que “uma família conservadora” não era uma delegação do dr.
Salazar entre o Porto e o Minho, suportada por regedores que tocavam concertina
nas festividades de Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, declarara o lente de
Coimbra insuportável como pessoa e, depois da guerra, permeável à corrupção e à
inabilidade, rodeado do seu séquito de militares e damas de companhia; mais tarde,
culpou-o de coisas inadmissíveis e, durante algum tempo, julguei tratar-se de
uma obsessão pessoal. Não era. Simplesmente, julgava-se uma espécie de
cavalheiro rural inglês, dotado de uma biblioteca e de um casarão entre
carvalhos frondosos, incompatível com um primeiro-ministro que se acreditava
ungido de capacidades largamente visionárias acerca dos destinos dos seus
concidadãos.
Tenho
podido explicar às gerações mais recentes da família, em ocasiões nem sempre
apropriadas (ou depois do pequeno-almoço de sábado ou em caminhadas pelos
pinhais dos arredores), que esta posição sobre o modo como aceitamos ou não
aceitamos a presciência de um governo é puramente conservadora. E que um conservador
não compreende uma sociedade cercada de regras, impostos, deveres, polícias do
espírito e do corpo, operações de vigilância que se confundem com armadilhas
aos cidadãos. Esse retrato convém muito às democracias de hoje em dia, que
acreditam num povo virtual e escondido em suas casas. Mas é um risco
incalculável. Porque uma sociedade sem “zonas de respiração”, sem fendas nas
muralhas que a cercam, sem possibilidade de divergir ou de encontrar atalhos,
corre o risco de sufocar a todo o momento. A coberto de um mais rigoroso
controle fiscal, sanitário e político, o nosso país sofre uma intrusão que,
daqui a uns tempos, as pessoas considerarão inadmissível. Ao contrário dos
políticos de hoje, que se consideram arquitectos de uma sociedade a caminho da
perfeição e civilizadores dos vetustos sertões lusitanos, o velho Doutor Homem,
meu pai, acreditava mais na organização espontânea das pessoas, uma resposta
admirável do género humano em todas as circunstâncias e diante de todas as
dificuldades. Ele não era um mestre de ciência política, mas conhecia o
desvario dos homens mal chegavam ao poder – e temia-o com razão.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Junho 2012
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