Outono: meditação sobre o que há-de vir
Todos os grandes autores, chegado o Outono, se ocuparam com meditações sobre a morte. Falo do Outono das suas vidas – e da contemplação do que há-de vir. Os Homem, um caso singular de arrogância peninsular, pouco se ocuparam do assunto.
Obrigados a sobreviver num anonimato que procuraram pelos seus próprios meios, como uma espécie de salvaguarda contra a democracia e a idade das multidões, os seus tempos de meditação eram ocupados com coisas sobretudo práticas; a espiritualidade literária ou filosófica dos meus antepassados era quase nenhuma, se exceptuarmos alguns arroubos literários do meu avô paterno (administrador de quintas do Douro, onde se entretinha a dialogar com ingleses razoavelmente iletrados ou, em alternativa, com o poeta Guerra Junqueiro retirado na sua Quinta da Batoca, em Barca d’Alva – convenhamos que a escolha não era muito requintada), vícios de bibliófilo do velho Doutor Homem, meu pai, e a dedicação romântica a tudo o que era inútil, por parte do meu Tio Alberto.
A Tia Benedita, matriarca da família, achava o assunto próprio de quem não tinha emprego ou de quem, tendo profissão, não se lhe dedicava com concentração. No seu casarão de Ponte de Lima bastavam-lhe as jornadas marianas de Maio e as festividades de Verão, além da visita anual a Braga – para apreciar os festejos, muito episcopais, da Semana Santa – para preencher a sua necessidade de religião; o resto era dedicado a sobreviver, aproveitando a lição de uma família de velhos miguelistas obrigados à rendição e à modéstia.
Ambas as coisas ajudaram muito a que o clã vivesse numa sensatez várias vezes confundida com egoísmo. Afastados da política porque o Príncipe fora proscrito, arredados da História porque ela se reescrevera com as cores da glória dos vencedores, os Homem dedicaram-se a viver com parcimónia e discrição. Foi, é bom notar, a sua salvação: há exemplos de antepassados e contemporâneos que teriam sido ou filósofos impenitentes (o Tio Henrique, que tinha a paixão da música), ou aventureiros das classes possidentes, conduzindo Alfa Romeos e seduzindo mordomas da Senhora da Agonia.
Só o Tio Alberto reuniu as qualidades de ambos; apaixonou-se por uma discreta e bela princesa do Cáspio, a quem sobreviveu alguns anos, e a quem dedicou o seu coração celibatário. Mas, chegado o Outono – o da sua vida – limitou-se a continuar a viver como se não houvesse eternidade.
De facto, não havia, nem há. A eternidade é o que leva os homens a perderem-se com mais frequência. Há só o que há-de vir.
in Domingo - Correio da Manha - 18 Setembro 2011
Obrigados a sobreviver num anonimato que procuraram pelos seus próprios meios, como uma espécie de salvaguarda contra a democracia e a idade das multidões, os seus tempos de meditação eram ocupados com coisas sobretudo práticas; a espiritualidade literária ou filosófica dos meus antepassados era quase nenhuma, se exceptuarmos alguns arroubos literários do meu avô paterno (administrador de quintas do Douro, onde se entretinha a dialogar com ingleses razoavelmente iletrados ou, em alternativa, com o poeta Guerra Junqueiro retirado na sua Quinta da Batoca, em Barca d’Alva – convenhamos que a escolha não era muito requintada), vícios de bibliófilo do velho Doutor Homem, meu pai, e a dedicação romântica a tudo o que era inútil, por parte do meu Tio Alberto.
A Tia Benedita, matriarca da família, achava o assunto próprio de quem não tinha emprego ou de quem, tendo profissão, não se lhe dedicava com concentração. No seu casarão de Ponte de Lima bastavam-lhe as jornadas marianas de Maio e as festividades de Verão, além da visita anual a Braga – para apreciar os festejos, muito episcopais, da Semana Santa – para preencher a sua necessidade de religião; o resto era dedicado a sobreviver, aproveitando a lição de uma família de velhos miguelistas obrigados à rendição e à modéstia.
Ambas as coisas ajudaram muito a que o clã vivesse numa sensatez várias vezes confundida com egoísmo. Afastados da política porque o Príncipe fora proscrito, arredados da História porque ela se reescrevera com as cores da glória dos vencedores, os Homem dedicaram-se a viver com parcimónia e discrição. Foi, é bom notar, a sua salvação: há exemplos de antepassados e contemporâneos que teriam sido ou filósofos impenitentes (o Tio Henrique, que tinha a paixão da música), ou aventureiros das classes possidentes, conduzindo Alfa Romeos e seduzindo mordomas da Senhora da Agonia.
Só o Tio Alberto reuniu as qualidades de ambos; apaixonou-se por uma discreta e bela princesa do Cáspio, a quem sobreviveu alguns anos, e a quem dedicou o seu coração celibatário. Mas, chegado o Outono – o da sua vida – limitou-se a continuar a viver como se não houvesse eternidade.
De facto, não havia, nem há. A eternidade é o que leva os homens a perderem-se com mais frequência. Há só o que há-de vir.
in Domingo - Correio da Manha - 18 Setembro 2011
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