domingo, julho 31, 2011

Da água de Melgaço à melancolia de Verão

A melancolia de Verão é uma coisa para velhos. O corpo é já uma espécie de desinência dispensável e pouco disponível, cansada da repetição ou do regresso das estações do ano; o Estio, esse sinónimo para eruditos desajustados à realidade, traz consigo o calor, a família em férias e um bando de adolescentes que povoa Moledo transformando o recato do povoado num acampamento de seres bronzeados que lêem os jornais, romances e as nuvens da meteorologia. O casario, outrora tranquilo e coberto pelo manto de nevoeiro matinal que protege a vegetação e o carácter discreto dos seus moradores, está agora cercado de visitantes. Uma vez por outra, a minha sobrinha Maria Luísa leva-me a Caminha, Cerveira ou a Vila Praia de Âncora para que o meu território não esteja tão limitado. Na semana passada descobrimos uma esplanada, em Caminha, onde se podia beber Água de Melgaço. O pormenor pode não ter importância, mas a mim comove-me; a Água de Melgaço é uma evocação do passado, com as suas garrafas fora de moda, o seu nome esquecido, a evocação de dietas de Verão para contrabalançar os desvarios de refeições que desmiolam o equilíbrio alimentar das famílias.

Podia mencionar, ano a ano, a memória de todos os prazeres minúsculos que atentaram contra a sensatez da minha vida: os passeios de barco no rio Minho, imitando as garotices de Tom Sawyer e Huckleberry Fin – ou as escaladas à casa do Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, escondido do mundo como um astrónomo que recusa contar os seus segredos celestes. Ou um romance de Verão, perdido nos álbuns de fotografias que nunca foram reunidas com medo de compromissos ou apenas do futuro. Ou um passeio pela Galiza a fim de reconhecer as rotas de piratas refugiados em Finisterra, o rigor matemático da geografia de El Ferrol, as amêijoas de Villagarcia de Arousa, as ostras de Ribadeo (uma das glórias literárias do Tio Alberto), as livrarias de Santiago de Compostela com as suas fachadas de granito e os seus esconderijos de há um século. O Verão do meu Minho litoral tinha ainda as suas às romarias que despontavam no calendário como uma obrigação secular, passada de geração em geração como um testemunho de devoção fora de moda. Só o velho Doutor Homem, meu pai, permanecia como uma excepção: ele lia os jornais do costume, na sua varanda de Ponte de Lima. Nada o demovia da ideia de que o mundo corria para lá do Minho, o que era uma ilusão que ninguém compreendia. Quando o Verão anunciava o seu fim, com as primeiras vindimas, ele limitava-se a olhar as montanhas sem uma ponta de melancolia.

in Domingo - Correio da Manhã - 31 Julho 2011