Notas de toponímia no litoral minhoto
Havia uma dúvida na família sempre que a Tia Benedita se referia a dois elementos toponímicos de Vila Praia de Âncora, onde amiúde se deslocava para visitar a Tia Henriqueta – a melhor das cozinheiras da família. Eram eles a Praça da República e a Rua 5 de Outubro (sem falar das ruas dedicadas a Cândido dos Reis e a Miguel Bombarda, outros símbolos republicanos). Da casa da Tia Henriqueta ela gostava de apreciar a cúpula e os granitos da capela da Senhora da Bonança que o tempo transformou mas que, para a matriarca dos Homem, nunca deixou de estar centrada no Largo das Necessidades (ou da Lagarteira, ou da Bonança).
Foi esse o motivo por que a família, que não gostava de polémicas toponímicas, preferiu a partir dos anos trinta veranear em Moledo e em Caminha, entre moinhos e sargaço. A preferência trouxe-me, cinquenta anos depois, aos pinhais de Moledo, a praia onde Dona Ester, minha mãe, decidiu que os seus filhos (os mais novos) deviam aprender a nadar sob a supervisão e a generosidade do Senhor Azevedo, um dos mais dignos representantes da classe dos velhos banheiros do Minho, para quem nunca se colocou o problema do frio das ondas. Os meus sobrinhos-netos, filhos da minha sobrinha Maria Luísa, apenas se queixam das neblinas e não dão conta da temperatura da água, que eles consideram normais; a mãe, deitada ao sol, na areia, onde creio que lê o romance de um autor americano cujo nome não consigo fixar, ignora este confronto entre a história toponímica e a história balnear do litoral que a família frequenta desde há um século. Desconheço se alguma vez, sentada a uma das mesas do bar da praia, o Pra Lá Caminha, se preocupou com essa genealogia brava e melancólica, mas creio que não. O sol é uma dádiva do Verão tal como a chuva miúda e permanente nos reconforta durante o resto do ano.
Lendo o jornal, aos sábados de esplanada, ou esperando que a manhã de domingo se prolongue em Outonos letais e poéticos, Maria Luísa preocupa-se com a herança da família. Ela gostaria que tivéssemos sido diferentes ou, talvez, que tivéssemos pertencido a uma tradição “mais democrática”, partilhado a alegria das revoluções que os arquivos dão como vencedores. Coube-lhe receber-nos assim: fotografias de avós bem vestidos, uma cópia perfeita do retrato do Senhor Dom Miguel no casarão de Ponte de Lima, uma biblioteca que se amiúde se confunde com um depósito de papéis irrisórios, Dona Elaine que insiste em reforçar os assados de domingo, esperando sobrinhos devoradores ou as minhas irmãs que agitam a bandeira da dieta e do emagrecimento compulsivo. O mundo não é perfeito, mas quase.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Agosto 2011
Foi esse o motivo por que a família, que não gostava de polémicas toponímicas, preferiu a partir dos anos trinta veranear em Moledo e em Caminha, entre moinhos e sargaço. A preferência trouxe-me, cinquenta anos depois, aos pinhais de Moledo, a praia onde Dona Ester, minha mãe, decidiu que os seus filhos (os mais novos) deviam aprender a nadar sob a supervisão e a generosidade do Senhor Azevedo, um dos mais dignos representantes da classe dos velhos banheiros do Minho, para quem nunca se colocou o problema do frio das ondas. Os meus sobrinhos-netos, filhos da minha sobrinha Maria Luísa, apenas se queixam das neblinas e não dão conta da temperatura da água, que eles consideram normais; a mãe, deitada ao sol, na areia, onde creio que lê o romance de um autor americano cujo nome não consigo fixar, ignora este confronto entre a história toponímica e a história balnear do litoral que a família frequenta desde há um século. Desconheço se alguma vez, sentada a uma das mesas do bar da praia, o Pra Lá Caminha, se preocupou com essa genealogia brava e melancólica, mas creio que não. O sol é uma dádiva do Verão tal como a chuva miúda e permanente nos reconforta durante o resto do ano.
Lendo o jornal, aos sábados de esplanada, ou esperando que a manhã de domingo se prolongue em Outonos letais e poéticos, Maria Luísa preocupa-se com a herança da família. Ela gostaria que tivéssemos sido diferentes ou, talvez, que tivéssemos pertencido a uma tradição “mais democrática”, partilhado a alegria das revoluções que os arquivos dão como vencedores. Coube-lhe receber-nos assim: fotografias de avós bem vestidos, uma cópia perfeita do retrato do Senhor Dom Miguel no casarão de Ponte de Lima, uma biblioteca que se amiúde se confunde com um depósito de papéis irrisórios, Dona Elaine que insiste em reforçar os assados de domingo, esperando sobrinhos devoradores ou as minhas irmãs que agitam a bandeira da dieta e do emagrecimento compulsivo. O mundo não é perfeito, mas quase.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Agosto 2011
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