Os portugueses gostam pouco de Portugal
Os portugueses, murmurava o velho Doutor Homem, meu pai, “não gostam de Portugal”. O causídico era um renitente apóstolo que bramava contra os seus concidadãos, por achar que entre eles e a velha Pátria havia uma enervante soma de mal-entendidos. E, no entanto, era raro encontrar, nesses longínquos anos cinquenta, uma alma que se dispusesse a dizer do país aquilo que Eça de Queirós coleccionara setenta anos antes, ao longo dos seus romances e em páginas que ainda hoje são como aguilhões para o orgulho do constitucionalismo; na época, com o dr. Salazar a passar férias na Urgeiriça, entre engenheiros da minas e clérigos de primeira linha, Portugal era um lugar recatado e ligeiramente sonâmbulo de onde apenas se distinguia a figura áspera ou rezinga da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que se recolhia ao casarão de Ponte de Lima para proteger-se do calor, do ruído das romarias e do excesso de nudez que vislumbrava onde não havia senão mangas arregaçadas. A Tia Benedita era, por si só, uma figura de romance; contrastava com a mediania complacente – era, verdadeiramente, a grande reaccionária da família, avessa à beatitude mediana da época e à pacífica mortificação daqueles tempos.
Ora, os portugueses gostavam do seu país; simplesmente, como descortinava o velho Doutor Homem, meu pai, “o seu país” não era bem “o seu país”, mas uma aldeia beirã e iliberal, vestida em Santa Comba e protegida da luz do sol por um chapéu de feltro negro. Os Homem, pela cartilha de Dona Ester, minha mãe, achavam que o sol, a praia, o iodo e as viagens para lá de Espanha, eram um antídoto contra a pequenez e os costumes – e achavam que as grandes paisagens, as grandes personagens (do senhor Dom Miguel ao Remexido, de Dona Carlota Joaquina a João Franco, para não mencionar uma galeria de autores rebeldes e afastados das Selectas) e os grandes desígnios, não faziam parte dos gostos dos portugueses. O Tio Alberto rasgava as sombras verdejantes de São Pedro de Arcos ao volante de um Super Sport Villa d’Este 2500, o Alfa Romeo da época, que ele julgava o ideal para transportar Gina Lollobrigida ou Rita Hayworth (conservou-o durante dez anos, até um dia aparecer nas ruas de Caminha com um Alfa Spider descapotável vermelho). Ele foi o português heróico da minha juventude, a excepção naquele mundo de receios e cautelas excessivas. A família, sim, gostava de Portugal, apreciava a ventania das praias, o halo de loucura que tomava conta dos melhores de nós, a paisagem profunda e sombria das nossas serrras. Os nossos heróis eram pouco bem comportados.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Agosto 2011
Ora, os portugueses gostavam do seu país; simplesmente, como descortinava o velho Doutor Homem, meu pai, “o seu país” não era bem “o seu país”, mas uma aldeia beirã e iliberal, vestida em Santa Comba e protegida da luz do sol por um chapéu de feltro negro. Os Homem, pela cartilha de Dona Ester, minha mãe, achavam que o sol, a praia, o iodo e as viagens para lá de Espanha, eram um antídoto contra a pequenez e os costumes – e achavam que as grandes paisagens, as grandes personagens (do senhor Dom Miguel ao Remexido, de Dona Carlota Joaquina a João Franco, para não mencionar uma galeria de autores rebeldes e afastados das Selectas) e os grandes desígnios, não faziam parte dos gostos dos portugueses. O Tio Alberto rasgava as sombras verdejantes de São Pedro de Arcos ao volante de um Super Sport Villa d’Este 2500, o Alfa Romeo da época, que ele julgava o ideal para transportar Gina Lollobrigida ou Rita Hayworth (conservou-o durante dez anos, até um dia aparecer nas ruas de Caminha com um Alfa Spider descapotável vermelho). Ele foi o português heróico da minha juventude, a excepção naquele mundo de receios e cautelas excessivas. A família, sim, gostava de Portugal, apreciava a ventania das praias, o halo de loucura que tomava conta dos melhores de nós, a paisagem profunda e sombria das nossas serrras. Os nossos heróis eram pouco bem comportados.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Agosto 2011
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