O Verão interrompe esse ciclo de tranquilidade que só se vive hoje nos romances quase bucólicos de Mrs. Trollope ou, por cúmulo, nas recordações de um velho que se supõe letrado. Moledo transforma-se numa academia cujos pares, de livro na mão, visitam a praia em busca do iodo de outras eras. O iodo é o meu mito pessoal e recomendo-o como forma de abreviar conversas sobre o que fazer durante “as férias de Verão”; a menção ao iodo transporta consigo um enigma que poucos sabem decifrar, mas que a mim serve como argumento. Quando parte da família começou, no Verão, a rumar ao Algarve ou a outras paragens meridionais, abaixo do Equador ou na sua proximidade, eu insistia nas qualidades das praias do Minho. “E que qualidades são essas?” O iodo. Tudo se resumia ao iodo. A menção do iodo calava todas as dúvidas. Repousante, vivificante para os pulmões e doenças respiratórias, o reumatismo, os problemas de pele e os males de amor, o iodo era, para o Verão, o que as sulfamidas e o mercurocromo deviam ser para ferimentos em geral. Eu não mencionava (e continuo a abster-me de o fazer) a frescura das manhãs (a que os meus sobrinhos chamam, exageradamente, “o frio”) nem a neblina sobre Santa Tecla.
O meu argumento foi válido por uma ou duas décadas, durante as quais atormentei o desejo de parte da família se libertar da obrigação de inaugurar e concluir a época balnear nos areais de Moledo. Com o tempo, o argumento perdeu força. Apenas a minha sobrinha Maria Luísa, contra todas as expectativas, continuou a marcar presença estival naquilo que, durante o resto do ano, é conhecido como o eremitério de Moledo. Intimamente, ela sabe que Moledo é o que resta de uma civilização que procurava alimentar com mitos a recusa dos tempos modernos. Os velhos, como eu, e os novos, entendem-se nessa recusa que, às vezes, se parece bastante com indiferença. Os meus sobrinhos, passada a idade em que apenas utilizavam o pequeno pinhal em cerimónias rituais para fumar haxixe, descobriram também as virtudes de Moledo. Moledo permanece, sitiada diante do mar, e enquanto não arderem as encostas de pinhais e de velhos carvalhos, lá nas alturas. Os sobrinhos vêm para apreciar uma raridade de museu – um tio que, para além de se fingir tolerante, os senta à mesa e não os entende totalmente. Só eles não acham estranha a minha palestra sobre as virtudes do iodo. É uma excentricidade que desculpam e aceitam. Quando perdemos uma excentricidade, perdemos aquilo que nos faz continuar vivos no meio das pessoas como nós.
in Domingo - Correio da Manhã - 7 de Agosto 2011
O meu argumento foi válido por uma ou duas décadas, durante as quais atormentei o desejo de parte da família se libertar da obrigação de inaugurar e concluir a época balnear nos areais de Moledo. Com o tempo, o argumento perdeu força. Apenas a minha sobrinha Maria Luísa, contra todas as expectativas, continuou a marcar presença estival naquilo que, durante o resto do ano, é conhecido como o eremitério de Moledo. Intimamente, ela sabe que Moledo é o que resta de uma civilização que procurava alimentar com mitos a recusa dos tempos modernos. Os velhos, como eu, e os novos, entendem-se nessa recusa que, às vezes, se parece bastante com indiferença. Os meus sobrinhos, passada a idade em que apenas utilizavam o pequeno pinhal em cerimónias rituais para fumar haxixe, descobriram também as virtudes de Moledo. Moledo permanece, sitiada diante do mar, e enquanto não arderem as encostas de pinhais e de velhos carvalhos, lá nas alturas. Os sobrinhos vêm para apreciar uma raridade de museu – um tio que, para além de se fingir tolerante, os senta à mesa e não os entende totalmente. Só eles não acham estranha a minha palestra sobre as virtudes do iodo. É uma excentricidade que desculpam e aceitam. Quando perdemos uma excentricidade, perdemos aquilo que nos faz continuar vivos no meio das pessoas como nós.
in Domingo - Correio da Manhã - 7 de Agosto 2011
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