domingo, julho 24, 2011

Uma neblina acidental sob Santa Tecla

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha uma relação ambivalente com a Sinfonia n.º 6 de Mahler e eu compreendo, a esta distância, que há circunstâncias para tudo e que devemos ser compreensivos. Essa ambivalência tinha a ver com a meteorologia; o causídico argumentava que os dias de neblina no litoral minhoto, retendo-o em casa até ao final da manhã, impedindo-o – a ele – de cumprir a caminhada diária entre os muros do arvoredo de Ponte de Lima e – a nós – de avançar sobre os areais de Moledo, eram uma boa desculpa para se sentar na varanda interior, diante do pátio, e pôr as leituras em dia. Queria ele referir-se aos jornais das últimas semanas, acumulados numa pilha que ameaçava desmoronar-se e mostrar que se podia sobreviver sem saber como o ia o mundo. Aproveitando esse deslize da meteorologia, escolhia a sua versão de Mahler que tinha a vantagem acrescida de, com toda a certeza, afugentar o resto da família.

O Verão de Ponte de Lima decorria neste equilíbrio meteorológico: ou os dias de canícula de Ponte de Lima, uma espécie de cenário italiano com os seus córregos de poeira levantada pelo vento, entre fileiras de choupos, ou o prolongamento das” neblinas matinais a norte do Cabo Carvoeiro”, uma expressão fixada em todos os léxicos desde que o Dr. Anthímio de Azevedo ganhou, com merecimento, estatuto de glória nacional.

Hoje em dia, essa neblina é injustificadamente maltratada. Ela tinha uma função (para lá do gosto musical, discutível e travesso, do velho Dr. Homem, meu pai) muito precisa durante o Verão: servir de interlúdio. Os grupos de frequentadores dos areais de Moledo ou da foz do Minho não se abstinham de se fixar na praia; profissionais da “época balnear”, nada os detinha – compareciam no seu posto munidos de agasalhos apropriados, aguardando que as derradeiras manchas de nuvens se evaporassem dos cabeços de Santa Tecla para dar lugar a um sol ameno, retemperador e conciliado com o iodo do mais belo litoral português. Guardo ainda, entre os álbuns de velhas fotografias, retratos de banhistas de outros tempos, envergando camisolas ou ligeiros agasalhos, sentados sobre o areal das praias. A minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, sugeriu uma vez que se tratava de pudor excessivo. Esclareci-a: não – tratava-se, antes, de uma nobre coragem diante dos Elementos. Nenhuma neblina nos afastaria da praia, uma vez decidido que era tempo de praia. O sol havia de chegar; aquele amuo era apenas uma neblina acidental sobre Santa Tecla.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Julho 2011