domingo, julho 10, 2011

Receituário banal para tempos de calor

Já em tempos expliquei ao leitor paciente e crédulo que, independentemente do lugar que Moledo ocupa no planisfério do clima, fui preparado para climas amenos e tépidos. O velho Doutor Homem, meu pai, que leu os clássicos da literatura russa sem intenções moralizadoras, achava que Raskolnikóv, o atormentado personagem de ‘Crime e Castigo’, era um produto do frio e dos temporais de neve que assolavam São Petersburgo, muito para lá da sua pobreza. A pobreza suscita compaixão, piedade e realizações sociais; o frio gera indisponibilidade para a vida. Este juízo, certamente flutuante, era o produto de muitos Verões passados no remanso miguelista e quase tropical de Ponte de Lima e de crepúsculos suaves nos areais do Minho litoral, que Dona Ester, minha mãe, achava que podiam, com vantagem, substituir os consultórios médicos onde crianças e adolescentes eram tratados às bronquites e à depressão.

A depressão não era ainda conhecida. Periodicamente, adolescentes eram acometidos de períodos de tristeza e melancolia (a acédia dos poetas mais cultos e que valia a pena ler) mas isso era desvalorizado e tratado, em muitos casos, como um problema de anorexia (ou do que viria a ser assim conhecido). Deu-se o caso de um primo afastado, de Lisboa, cujo pai, alto funcionário da administração do Estado, o enviou para as margens do Cávado com o fito de se tratar de uma grave melancolia. Ao fim de algumas semanas, o arroz de pato da Tia Henriqueta fez milagres, na companhia de outros medicamentos naturais. O primo, cujo nome agora me escapa, mas que uns anos depois casou com a filha de uma marquesa espanhola, muito redonda e avessa ao pó em cima dos móveis, engordou durante dois meses e regressou de comboio a Lisboa, onde o Cávado, a Serra de Arga, os freixos de Ponte de Lima e o mexilhão de Vila Praia d’Âncora foram declarados nomes sagrados e parte da farmacopeia da família.

O leitor sabe já que Dona Ester, minha mãe, não deixava estes assuntos subirem a conselho de família (geralmente ao jantar de sexta-feira) e tratava-os com indiferença. O velho Doutor Homem, meu pai, sublinhava que tudo se arranjava com maneiras à mesa, leituras anti-românticas e a aprendizagem de regras de brídege. As maneiras à mesa não eram assunto seu e não me recordo de ele ter alguma vez ajudado alguém a melhorar os resultados do brídege; mas em matéria de leituras anti-românticas era um sacerdote vigilante. Ele aconselhava poesia e sentimentalismo em doses – digamos – homeopáticas. Pouca e adequada. Foi assim que nos incompatibilizámos com o mundo.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Julho 2011