A civilização dos tempos livres
O velho Doutor Homem, meu pai, julgava – na sua estultícia – que as férias eram um período de descanso. Os anos e os costumes desmentiram-no sucessivamente sempre que tiveram oportunidade. Primeiro, com a asserção burguesa de que não havia tempo inútil na nossa vida e que, portanto, não só era preciso transformar em proventos tudo o que nos passasse pela mão – como, além disso, o tempo se encarregou de encontrar, para a expressão “tempo livre”, um prefixo abominável que passou a dominar a “ciência das férias”: “ocupação”. Ora, a “ocupação dos tempos livres” passou a ser, essa sim, uma ciência incontornável e omnipresente, cujos técnicos estão colocados em todos os níveis da sociedade e em todas as escalas da vida humana, partindo – todos – do princípio de que, se há tempo livre, ele deve ser ocupado com determinação. Além da “ocupação dos tempos livres” passou a existir, para os domínios da puberdade e da puericultura, a expressão, igualmente deplorável, de “aproveitamento dos tempos livres”. Desses propósitos resultou um mundo comandado pela indústria do lazer com o único propósito explícito de terminar quer com os tempos livres, quer com a solidão criadora que está na base do lazer, propriamente dito.
A Tia Benedita – há quem atribua o facto “aos genes” – sobreviveu até aos noventa anos, aproximadamente. Nunca fez desporto nem praticou qualquer tipo de regime alimentar persecutório, tirando, nos seus períodos de maior devoção e ultramontanismo, aquele saudável jejum das sextas-feiras. Mesmo assim, a substituição da galinha de espeto pelo peixe do mar do Minho nunca foi uma imposição – ela seguia o preceito como uma consequência natural da sua vida dedicada à tradição e à defesa do século XIX. E, valha a verdade, nunca “aproveitou os tempos livres”. Igual propósito tiveram os meus antepassados que desconheciam a ciência do tempo livre, precisamente porque tinham sido educados na presunção de que a preguiça, praticada com parcimónia e delicadeza, era um dispositivo da civilização – uma civilização que nos redimia, em ocasiões propícias e merecidas, pela arte de contemplar, de apreciar o silêncio e de gozar os bons momentos. Nenhum de nós foi atleta, trapezista ou astrólogo. Houve tocadores de oboé (como o Tio Henrique, uma preciosidade dos Arcos) que dedicaram a sua vida a imaginar que compunham uma sinfonia sobre as savanas de África. Mas nenhum deles ocupou os seus tempos livres. Pelo contrário, delapidaram essa parte da sua vida conforme entenderam. E creio bem que foram felizes e razoavelmente civilizados.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Agosto 2011
A Tia Benedita – há quem atribua o facto “aos genes” – sobreviveu até aos noventa anos, aproximadamente. Nunca fez desporto nem praticou qualquer tipo de regime alimentar persecutório, tirando, nos seus períodos de maior devoção e ultramontanismo, aquele saudável jejum das sextas-feiras. Mesmo assim, a substituição da galinha de espeto pelo peixe do mar do Minho nunca foi uma imposição – ela seguia o preceito como uma consequência natural da sua vida dedicada à tradição e à defesa do século XIX. E, valha a verdade, nunca “aproveitou os tempos livres”. Igual propósito tiveram os meus antepassados que desconheciam a ciência do tempo livre, precisamente porque tinham sido educados na presunção de que a preguiça, praticada com parcimónia e delicadeza, era um dispositivo da civilização – uma civilização que nos redimia, em ocasiões propícias e merecidas, pela arte de contemplar, de apreciar o silêncio e de gozar os bons momentos. Nenhum de nós foi atleta, trapezista ou astrólogo. Houve tocadores de oboé (como o Tio Henrique, uma preciosidade dos Arcos) que dedicaram a sua vida a imaginar que compunham uma sinfonia sobre as savanas de África. Mas nenhum deles ocupou os seus tempos livres. Pelo contrário, delapidaram essa parte da sua vida conforme entenderam. E creio bem que foram felizes e razoavelmente civilizados.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Agosto 2011
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