Ainda a depressão e os estados de melancolia
A minha sobrinha Maria Luísa declarou, à mesa de almoço, que a crónica do domingo passado era uma das provas da minha misantropia e, provavelmente, do meu cinismo – por ter manifestado algumas dúvidas sobre a existência de um fenómeno designado “depressão”. Argumentei que a depressão existe realmente mas que é nosso dever, como seres humanos, resistir-lhe com os meios naturais à nossa disposição, desde banhos de mar, arroz de pato, passeios pelas colinas da Serra d’Arga e algum egoísmo no limite da elegância. Esta lição, acrescentei, foi praticada por Dona Ester, minha mãe, com conveniente insistência, tendo produzido uma geração de seres humanos não especialmente bons mas apenas decentes e permeáveis ao bem e ao mal que até aqui conhecemos. Ciente de que a luta entre bem e mal não terminaria, Dona Ester, minha mãe, fez-nos ver que devíamos manter relações estáveis com um e com o outro, a fim de não sucumbirmos no campo de batalha.
O velho Doutor Homem, meu pai, que era mais indiferente em relação ao modo como os seus filhos sobreviviam às hecatombes da alma, não deixava de perseguir essa prática, acrescentando-lhe o seu tom anti-romântico, que era mais de natureza literária (incomodava-o o niilismo lamechas dos poetas das províncias, da mesma forma que o indispunha o confessionalismo primário dos vates das nossas selectas) do que propriamente temperamental. Em casos extremos, e geralmente perto da hora da sesta durante os Verões tórridos de Ponte de Lima, encerrava os debates invocando a sua misantropia e um mal de gota que o impedia de acompanhar a história da humanidade.
“O tio”, dizia Maria Luísa, “ sabe bem que se finge de duro.” Não sabia. Habituado às minhas fragilidades, sempre tentei harmonizá-las com as minhas tentações. A Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, defendia que quem não tinha posses não devia alimentar tristezas. Assim ela decretava, no meio dos freixos e choupos do pátio de Ponte de Lima, a existência de uma luta de classes regulada pela disposição mental e psíquica dos combatentes. As classes possidentes – uma velharia que deixou há muito de existir nas colinas dos Arcos, de Guimarães e de Ponte da Barca – tinham mais queda para a tristeza e para a melancolia, resultado de más leituras e de muita educação liberal. Era um erro. A civilização ergue-se sobre os alicerces da melancolia; mas não mostra o seu rosto através do véu da “depressão” transformada em doença de incapazes mimados e com poucos hábitos de trabalho. Há um tempo para tudo, queria eu dizer.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Julho 2011
O velho Doutor Homem, meu pai, que era mais indiferente em relação ao modo como os seus filhos sobreviviam às hecatombes da alma, não deixava de perseguir essa prática, acrescentando-lhe o seu tom anti-romântico, que era mais de natureza literária (incomodava-o o niilismo lamechas dos poetas das províncias, da mesma forma que o indispunha o confessionalismo primário dos vates das nossas selectas) do que propriamente temperamental. Em casos extremos, e geralmente perto da hora da sesta durante os Verões tórridos de Ponte de Lima, encerrava os debates invocando a sua misantropia e um mal de gota que o impedia de acompanhar a história da humanidade.
“O tio”, dizia Maria Luísa, “ sabe bem que se finge de duro.” Não sabia. Habituado às minhas fragilidades, sempre tentei harmonizá-las com as minhas tentações. A Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, defendia que quem não tinha posses não devia alimentar tristezas. Assim ela decretava, no meio dos freixos e choupos do pátio de Ponte de Lima, a existência de uma luta de classes regulada pela disposição mental e psíquica dos combatentes. As classes possidentes – uma velharia que deixou há muito de existir nas colinas dos Arcos, de Guimarães e de Ponte da Barca – tinham mais queda para a tristeza e para a melancolia, resultado de más leituras e de muita educação liberal. Era um erro. A civilização ergue-se sobre os alicerces da melancolia; mas não mostra o seu rosto através do véu da “depressão” transformada em doença de incapazes mimados e com poucos hábitos de trabalho. Há um tempo para tudo, queria eu dizer.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Julho 2011
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