Os difíceis anos que chegam
Os ventos da história não vão e voltam – como os das altas pressões que a família se habituou a estudar nas cartas que o Dr. Anthímio de Azevedo mostrava, orgulhoso, na televisão. Os ventos da história circulam, as pessoas amadurecem – como certos frutos de alguma utilidade – e morrem, as casas envelhecem, as árvores reproduzem-se se tiverem sorte. Existe, no universo, uma certa ordem amarga e banal que se repete para descontentamento dos optimistas de todas as condições; infelizmente para eles, os momentos de glória não são perpétuos e há contas a ajustar com a realidade. Os meus sobrinhos não gostam que se lhes lembre, no pico do Verão, a existência do Outono; até lá, limitam-se a vaguear pela praia como adolescentes perpétuos. Vivem como recolectores, saboreando a leveza das coisas, e eu compreendo a atracção pelo efémero, pela simplicidade da areia de Moledo, pelo mar do Minho, pela ideia das férias que representam o que de melhor tem o Verão.
Durante anos e anos, este velho minhoto, contemporâneo do Titanic e quase da primeira utilização da penicilina (tal como o óleo de fígado de bacalhau ou o mercurocromo, as novas gerações desconhecem a sua existência) lembrou à família – reunida em conciliábulos de fim de semana, observando como um domingo se sucedia a outros – que os anos difíceis chegariam.
A minha sobrinha Maria Luísa pensou, durante algum tempo, que se tratava de uma tentação reaccionária de um tio que o Minho conservou para lá de todas as probabilidades; o meu sermão da montanha seria uma espécie de anátema contra a democratização da sociedade, a distribuição da riqueza e a ascensão das classes trabalhadoras. Eu já estava velho para isso. O velho Doutor Homem, meu pai, notara a hipocrisia do lente de Coimbra, o dr. Salazar, que tivera o desplante de declarar não poder permitir-se que o operariado se transformasse numa classe privilegiada. Eu já estava velho para isso. Limitava-me, em arengas quase murmuradas diante de dos meus irmãos, ocupados com leis e finanças, a lembrar que os ventos da história circulam e que os anos difíceis chegariam porque o capital é mortífero e cruel. No fundo, lembraria a Tia Benedita, que gostava de coleccionar lugares-comuns, foram os validos do irmão do Senhor Dom Miguel que andaram pelas tabernas de Londres arrebanhando mercenários e custeando a empresa com os empréstimos dos agiotas. Custou a pagar essa dívida. Os mercenários do nosso tempo são auto-estradas caras, obras inúteis e promessas de progresso. Os difíceis anos que chegam são a paga pela crendice dos meus compatriotas.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Setembro 2011
Durante anos e anos, este velho minhoto, contemporâneo do Titanic e quase da primeira utilização da penicilina (tal como o óleo de fígado de bacalhau ou o mercurocromo, as novas gerações desconhecem a sua existência) lembrou à família – reunida em conciliábulos de fim de semana, observando como um domingo se sucedia a outros – que os anos difíceis chegariam.
A minha sobrinha Maria Luísa pensou, durante algum tempo, que se tratava de uma tentação reaccionária de um tio que o Minho conservou para lá de todas as probabilidades; o meu sermão da montanha seria uma espécie de anátema contra a democratização da sociedade, a distribuição da riqueza e a ascensão das classes trabalhadoras. Eu já estava velho para isso. O velho Doutor Homem, meu pai, notara a hipocrisia do lente de Coimbra, o dr. Salazar, que tivera o desplante de declarar não poder permitir-se que o operariado se transformasse numa classe privilegiada. Eu já estava velho para isso. Limitava-me, em arengas quase murmuradas diante de dos meus irmãos, ocupados com leis e finanças, a lembrar que os ventos da história circulam e que os anos difíceis chegariam porque o capital é mortífero e cruel. No fundo, lembraria a Tia Benedita, que gostava de coleccionar lugares-comuns, foram os validos do irmão do Senhor Dom Miguel que andaram pelas tabernas de Londres arrebanhando mercenários e custeando a empresa com os empréstimos dos agiotas. Custou a pagar essa dívida. Os mercenários do nosso tempo são auto-estradas caras, obras inúteis e promessas de progresso. Os difíceis anos que chegam são a paga pela crendice dos meus compatriotas.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Setembro 2011
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