domingo, julho 03, 2011

O começo do Verão em pleno mar

O início da época balnear constitui, em Moledo, um ritual dos meados do século XX. Segundo a minha sobrinha Maria Luísa a data mais acertada seria mesmo o século XIX, coisa que atribuo – sem mágoa – à falta de referências sobre a história pátria e à ignorância (que vem desde Eça) acerca do tempo dos nossos bisavós. Maria Luísa fica, de resto, impressionada com a repetição de rituais; tanto fica comovida como siderada nos limites da irritação. Confrontada com a placidez geral, ela acha que “a sociedade” está apenas “desmobilizada”, coisa que eu não entendo; quanto a mim, “a sociedade” está perfeitamente mobilizada: participa nas cerimónias de abertura da época balnear, festeja a chegada do Verão, despede-se de um governo e desconfia do seguinte, critica asperamente as instituições, vigia os vizinhos e gasta algum dinheiro. Isto constitui a prova mais do que evidente da “mobilização da sociedade”. Não se lhe peça mais.

Ora, a abertura da época balnear restringe-se, hoje, à invasão selvagem do areal e à marcação, metro a metro, do território engalanado pelas vetustas barracas de praia, uma herança multicolor da década de sessenta. Hasteia-se uma bandeira, respira-se o aroma de bronzeador, cumprimentam-se os repetentes e os clássicos ocupantes do território. Desde que me lembro, os primeiros feriados de Junho são parte essencial dessa cerimónia despreocupada e reservada aos que sempre consideraram que, longe das Caraíbas e dos ventos Suão e Mistral, Moledo é o centro do mundo, uma espécie de marco geodésico destinado a reviver o passado, a prolongar rituais de iniciação na idade adulta e a impedir que a história perca sentido e oportunidade.

Maria Luísa arrastou os filhos consigo, pelo areal fora; eu cheguei mais tarde, depois de passado aquele período em que a brisa matinal se confundia com um vendaval que atropelava o forte da Ínsua, de requebros azulados, românticos e indiferentes à multidão que estacionara os automóveis nos pinhais vizinhos. Verifiquei que os vizinhos do ano passado eram os mesmos deste ano; percebi que na crista das ondas havia o mesmo reflexo prateado de festa minhota e eternamente dominical (mesmo não sendo domingo) – enfim, assumi que o mundo estava certo e conforme. Ao princípio da tarde, o meu sobrinho Afonso declarou que iria retirar-se a fim de combater umas sardinhas que inauguravam a época. Eu sorri. A cena repete-se há mais de cinquenta anos e é sempre comovente. Eis um conservador sem arrependimento nem dor.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Julho 2011