O monóculo vaidoso e o mar da eternidade
Foi um pouco depois de chegar o submarino ‘Albacora’, no estertor dos anos sessenta que o velho Doutor Homem, meu pai, decretou o fim do regime. Desde essa tarde de domingo, tingida pelo nevoeiro da Foz, até ao 25 de Abril de 1974, passou muito tempo. Não foi por isso que, nessa manhã de há 35 anos, o velho causídico se esqueceu do sobretudo que o protegia das derradeiras brisas de Abril – o fim do regime não teve nada a ver com a meteorologia –, mas porque saiu apressado a fim de comprar os jornais. Manter as rotinas, celebrar o costume, evitar as mudanças bruscas: eis uma divisa de serenidade que o velho conservador (tão conservador na política como liberal na vida inteira) prezou até ao fim. Por isso, ao chegar ao fim da rua, a caminho da tabacaria de A Brasileira, retrocedeu e subiu os dois degraus até ao bengaleiro de casa, de onde recolheu o sobretudo. Foi assim, vestido e agasalhado, que o velho Doutor Homem, meu pai, enfrentou a manhã, a neblina da Foz (a mesma de sempre) e a revolução.
Distante do salazarismo, sempre agiu como se vivesse na Inglaterra (ele tinha o hábito de fazer citações incómodas de Disraeli, o que não o impediu de coleccionar biografias de Gladstone, o rival do autor de ‘Vivien Grey’, de que possuía um exemplar da terceira edição), entre ‘tories’ que tinham conhecido Churchill e editoriais fundibulários do ‘Telegraph’. Tratava-se de uma desadequação profunda: Portugal era um país conservador sem verdadeiros conservadores, e nunca seria um país liberal porque não podia ter o luxo de admitir liberais. A Pátria viveria, mais uma vez, à procura de “líderes fortes” que metessem na ordem “a populaça” e administrassem o melhor possível os dinheiros dos impostos – coisa tão admissível como qualquer outra. Foi, pelo menos, o que mencionou ao fim da noite, ao comunicar à família que o monóculo do general Spínola era um mau augúrio, porque um homem que andava de pingalim nas savanas da Guiné e não tinha problemas oftalmológicos só podia apresentar-se assim por uma vaidade fora de moda.
O tempo deu-lhe razão, apesar de ter sobrevivido – à justa – ao mandato do general Spínola e à chegada do Inverno de 1974. Morreu em pleno mês de Dezembro, céptico e feliz, cinco anos depois de Dona Ester, minha mãe, a quem se juntou na eternidade para continuar os passeios crepusculares à beira do mar, supondo que existe mar depois desta vida. Se não existisse ele tê-lo-á imaginado, porque não era homem de se ficar.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 Dezembro 2009
Distante do salazarismo, sempre agiu como se vivesse na Inglaterra (ele tinha o hábito de fazer citações incómodas de Disraeli, o que não o impediu de coleccionar biografias de Gladstone, o rival do autor de ‘Vivien Grey’, de que possuía um exemplar da terceira edição), entre ‘tories’ que tinham conhecido Churchill e editoriais fundibulários do ‘Telegraph’. Tratava-se de uma desadequação profunda: Portugal era um país conservador sem verdadeiros conservadores, e nunca seria um país liberal porque não podia ter o luxo de admitir liberais. A Pátria viveria, mais uma vez, à procura de “líderes fortes” que metessem na ordem “a populaça” e administrassem o melhor possível os dinheiros dos impostos – coisa tão admissível como qualquer outra. Foi, pelo menos, o que mencionou ao fim da noite, ao comunicar à família que o monóculo do general Spínola era um mau augúrio, porque um homem que andava de pingalim nas savanas da Guiné e não tinha problemas oftalmológicos só podia apresentar-se assim por uma vaidade fora de moda.
O tempo deu-lhe razão, apesar de ter sobrevivido – à justa – ao mandato do general Spínola e à chegada do Inverno de 1974. Morreu em pleno mês de Dezembro, céptico e feliz, cinco anos depois de Dona Ester, minha mãe, a quem se juntou na eternidade para continuar os passeios crepusculares à beira do mar, supondo que existe mar depois desta vida. Se não existisse ele tê-lo-á imaginado, porque não era homem de se ficar.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 Dezembro 2009
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