Metáforas de Outono e do mar de Moledo
Uma das minhas irmãs – ambas muito mais novas do que eu, coisa que atribuem a estágios esporádicos no hemisfério Sul e à frequência de ‘spas’ onde cuidam da vinda da eternidade – anda a ler um livro sobre a felicidade. Trata-se, esclarece-me, de auto-ajuda, um género que a minha livraria de Braga expõe com razoável pertinácia.
Na minha biblioteca, os livros não versam a felicidade, que é um tema muito recente e uma descoberta útil para a literatura feminina dos últimos cem anos. Os grandes livros são, justamente, sobre a infelicidade – da poesia de Shakespeare aos romances russos, passando pelos folhetins que amoleceram a sensibilidade das burguesias do século passado, os finais felizes eram antecedidos de larguíssimos períodos de sofrimento. Chorava-se bastante, nesse tempo – e a felicidade não era uma mercadoria literária. Não há lágrimas tão fatais como nesses livros. Mesmo as lágrimas da vida real eram cópias apenas satisfatórias das lágrimas dos romances, onde podiam verter-se à vontade e sem risco para a imaginação dos leitores.Com esta idade, tendo já dobrado os 85, toda a literatura é de auto-ajuda. O seu conforto é amável e propicia momentos de sonho e de devaneio. Diante da proximidade da morte ou da doença que os atinge, e aos que nos são próximos, os livros são uma espécie de recurso barato, com larga aceitação por todas as farmacopeias do espírito. Servem-nos bastante, os livros. Aceitam-nos como somos. Deixam-nos sós quando precisamos.
A minha sobrinha Maria Luísa, que arrumou o seu segundo divórcio na prateleira das recordações, encontra muita semelhanças entre a sua vida amorosa e a de todas as grandes histórias de amor, sem se envaidecer. A vaidade amorosa é um dos piores defeitos do género humano, precisamente porque entre a senhora Condessa de Gouvarinho e Madame Bovary ou a inocente Julie d’Aiglemont (de ‘A Mulher de Trinta Anos’, de Balzac) é o amor que trai e fere – nada de que nos possamos envaidecer. Maria Luísa acha que a felicidade, hoje, é apenas um padrão invisível para alumiar as almas que já não alimentam nenhuma ilusão. O arrebatamento da balzaquiana Julie, nos braços de Charles de Vandenesse, é o festejo de uma ilusão perdida, a da felicidade.
Quando vejo a minha irmã entretida a folhear o seu livro “sobre a felicidade”, retenho-a como um retrato junto da folhagem perdida dos hibiscos da próxima estação. Sinto uma aragem de leveza que exala ternura nesse retrato. Confunde-se com a brisa dos pinhais de Outono. Moledo serve para iluminar todas as metáforas.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Dezembro 2009
Na minha biblioteca, os livros não versam a felicidade, que é um tema muito recente e uma descoberta útil para a literatura feminina dos últimos cem anos. Os grandes livros são, justamente, sobre a infelicidade – da poesia de Shakespeare aos romances russos, passando pelos folhetins que amoleceram a sensibilidade das burguesias do século passado, os finais felizes eram antecedidos de larguíssimos períodos de sofrimento. Chorava-se bastante, nesse tempo – e a felicidade não era uma mercadoria literária. Não há lágrimas tão fatais como nesses livros. Mesmo as lágrimas da vida real eram cópias apenas satisfatórias das lágrimas dos romances, onde podiam verter-se à vontade e sem risco para a imaginação dos leitores.Com esta idade, tendo já dobrado os 85, toda a literatura é de auto-ajuda. O seu conforto é amável e propicia momentos de sonho e de devaneio. Diante da proximidade da morte ou da doença que os atinge, e aos que nos são próximos, os livros são uma espécie de recurso barato, com larga aceitação por todas as farmacopeias do espírito. Servem-nos bastante, os livros. Aceitam-nos como somos. Deixam-nos sós quando precisamos.
A minha sobrinha Maria Luísa, que arrumou o seu segundo divórcio na prateleira das recordações, encontra muita semelhanças entre a sua vida amorosa e a de todas as grandes histórias de amor, sem se envaidecer. A vaidade amorosa é um dos piores defeitos do género humano, precisamente porque entre a senhora Condessa de Gouvarinho e Madame Bovary ou a inocente Julie d’Aiglemont (de ‘A Mulher de Trinta Anos’, de Balzac) é o amor que trai e fere – nada de que nos possamos envaidecer. Maria Luísa acha que a felicidade, hoje, é apenas um padrão invisível para alumiar as almas que já não alimentam nenhuma ilusão. O arrebatamento da balzaquiana Julie, nos braços de Charles de Vandenesse, é o festejo de uma ilusão perdida, a da felicidade.
Quando vejo a minha irmã entretida a folhear o seu livro “sobre a felicidade”, retenho-a como um retrato junto da folhagem perdida dos hibiscos da próxima estação. Sinto uma aragem de leveza que exala ternura nesse retrato. Confunde-se com a brisa dos pinhais de Outono. Moledo serve para iluminar todas as metáforas.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Dezembro 2009
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