Os crepúsculos de Outono não regressam
O Outono vem cada vez mais tarde. Nem neblinas, nem chuvas mansas, nem interrupções para descolorir Moledo com a paleta de Outubro. Talvez ainda seja cedo para a literatura do género.
Já um dia contei aos leitores que a grandiosidade do crepúsculo do Outono não me traz à memória “those sad, dangerous things”, aquelas tristes e perigosas coisas para que o velho doutor Homem, meu pai, nos costumava advertir, roubando o verso a Shakespeare para nos emprestar algum do brilho e cultura que desperdiçaríamos com vaidade e inconstância. Ele tinha lido o verso numa daquelas antologias isabelinas que assinalavam a triste doçura do amor e citava-o amiúde quando os plátanos da Foz começavam a anunciar o Outono. A família nunca seguiu à risca a cartilha romântica do constitucionalismo, que mandava aproximar-se a melancolia com as folhas do Outono e afastar-se com o esplendor dos botões de magnólia explodindo nos jardins burgueses do Porto. O único mal que afligia esta família de varões insensíveis e de senhoras temperamentais mas de ideias fixas, era o reumatismo – não os hendecassílabos nem a rima alternada.
De modo que o crepúsculo do Outono não é um prefácio à melancolia da época. Traz-me recordações invejosas. Naquele período que ia do Verão de Ponte de Lima (quinze dias de Agosto, fatais e silenciosos, familiares) ao recomeço da vida depois das férias, havia um período em que permanecíamos na praia, assistindo à despedida da época balnear e à chegada dos bandos de patos das dunas, que vinham do interior para recuperar as dunas. Os anos cinquenta foram os meus anos românticos; o pôr do Sol de Afife, a estrada do Minho (esse litoral fotogénico que vai de La Guardia até aos arredores de Vila do Conde), a primeira viagem ao Brasil, o meu derradeiro Verão no Tamariz – tudo isso tem um ar de despedida de época balnear. De repente, os toldos de praia (uma raridade na época) recebiam o primeiro látego do vento de Outono, as primeiras chuvas, as leituras finais que sobravam da biblioteca aconselhada pelo velho doutor Homem, meu pai, confiante em que todas as estacões do ano eram boas para cultivar o espírito e para afastar os sintomas de barbárie. Mas eu já não era adolescente na altura.
Eu já tinha envelhecido e vestia fatos cinzentos, ou escuros, e usava chapéu. Formava a minha biblioteca. Resumia os meus amores até entã, jogava ‘poker’. Foi durante um crepúsculo de Outono que se desfez o meu noivado, anunciado com moderação. Aprendi que os crepúsculos de Outono não regressam.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Outubro 2009
Já um dia contei aos leitores que a grandiosidade do crepúsculo do Outono não me traz à memória “those sad, dangerous things”, aquelas tristes e perigosas coisas para que o velho doutor Homem, meu pai, nos costumava advertir, roubando o verso a Shakespeare para nos emprestar algum do brilho e cultura que desperdiçaríamos com vaidade e inconstância. Ele tinha lido o verso numa daquelas antologias isabelinas que assinalavam a triste doçura do amor e citava-o amiúde quando os plátanos da Foz começavam a anunciar o Outono. A família nunca seguiu à risca a cartilha romântica do constitucionalismo, que mandava aproximar-se a melancolia com as folhas do Outono e afastar-se com o esplendor dos botões de magnólia explodindo nos jardins burgueses do Porto. O único mal que afligia esta família de varões insensíveis e de senhoras temperamentais mas de ideias fixas, era o reumatismo – não os hendecassílabos nem a rima alternada.
De modo que o crepúsculo do Outono não é um prefácio à melancolia da época. Traz-me recordações invejosas. Naquele período que ia do Verão de Ponte de Lima (quinze dias de Agosto, fatais e silenciosos, familiares) ao recomeço da vida depois das férias, havia um período em que permanecíamos na praia, assistindo à despedida da época balnear e à chegada dos bandos de patos das dunas, que vinham do interior para recuperar as dunas. Os anos cinquenta foram os meus anos românticos; o pôr do Sol de Afife, a estrada do Minho (esse litoral fotogénico que vai de La Guardia até aos arredores de Vila do Conde), a primeira viagem ao Brasil, o meu derradeiro Verão no Tamariz – tudo isso tem um ar de despedida de época balnear. De repente, os toldos de praia (uma raridade na época) recebiam o primeiro látego do vento de Outono, as primeiras chuvas, as leituras finais que sobravam da biblioteca aconselhada pelo velho doutor Homem, meu pai, confiante em que todas as estacões do ano eram boas para cultivar o espírito e para afastar os sintomas de barbárie. Mas eu já não era adolescente na altura.
Eu já tinha envelhecido e vestia fatos cinzentos, ou escuros, e usava chapéu. Formava a minha biblioteca. Resumia os meus amores até entã, jogava ‘poker’. Foi durante um crepúsculo de Outono que se desfez o meu noivado, anunciado com moderação. Aprendi que os crepúsculos de Outono não regressam.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Outubro 2009
<< Home