As coisas novas chegam a Moledo
O velho Doutor Homem, meu pai, observou cuidadosamente o primeiro grande aparelho de estereofonia que entrava pela antiga casa do Porto antes de emitir um juízo: “Isto não vai parar.” Ele referia-se à catadupa de novidades que começaria a chegar – e chegou – com a electrónica e a tecnologia dos anos setenta. A minha sobrinha Maria Luísa recorda-se vagamente do significado da expressão “vira o disco e toca o mesmo”, mas não tem a noção de quanto isso era verdadeiro e poderia acontecer. Virar o disco e tocar o mesmo era, de qualquer modo, um acontecimento, e reenvia-me para uma das velhas grafonolas que estacionaram numa das casas de família e que continua guardada no velho casarão de Ponte de Lima, ele já de si mesmo uma espécie de museu. Nesse aparelho tudo era mau: a cobertura de pele que se foi corroendo, o estado lastimável das suas agulhas de cobre, a flanela que cobria o prato que se movia a setenta e oito rotações por minuto, a manivela que accionava o prato e o mandava rodar – e até os discos da His Master Voice ou da Universal com simpáticas interpretações de óperas a que Maria Callas não sobreviveu, mas que representaram anos de veneração a Anna Moffo, a soprano a que o velho Doutor Homem, meu pai, devotava um amor não correspondido, secreto e cheio de mal-entendidos.
O meu tio Alberto, esse que foi o bibliófilo da família e que, de São Pedro de Arcos, no alto das serras, passeava pelo planisfério com a ironia dos melros de arribação, preferia – para uma grafonola Silvertone dos anos trinta – os seus discos de modinhas brasileiras e do ‘fox-trot’ que chegava ao Minho com décadas de atraso. Nesses anos – os anos cinquenta –, imagino-o escutando Dick Farney, o cantor mais famoso da época em Copacabana, no seu eremitério serrano, poiso sazonal para as suas deambulações pelo mundo fora. Será talvez uma imagem demasiado melancólica para a época (este Outono de empréstimo, tépido e apenas refrescado pela ondulação do sargaço à crista das ondas), mas ela funciona como uma gratificação de esplendor e de glória pessoal. Solitário, o Tio Alberto vivia rodeado de livros e de mapas, de almanaques e de instrumentos de cozinha. Foi ele que inaugurou a dinastia dos celibatários da família, que eu continuei com desvelo e egoísmo, desinteressando-me do futuro da espécie e crente na competência do resto dos Homem para se reproduzirem e se multiplicarem com vaidade. Assim tem sido. Eu estou entre as coisas velhas da família e as coisas velhas de Moledo. Sou uma grafonola dos anos trinta.
O meu tio Alberto, esse que foi o bibliófilo da família e que, de São Pedro de Arcos, no alto das serras, passeava pelo planisfério com a ironia dos melros de arribação, preferia – para uma grafonola Silvertone dos anos trinta – os seus discos de modinhas brasileiras e do ‘fox-trot’ que chegava ao Minho com décadas de atraso. Nesses anos – os anos cinquenta –, imagino-o escutando Dick Farney, o cantor mais famoso da época em Copacabana, no seu eremitério serrano, poiso sazonal para as suas deambulações pelo mundo fora. Será talvez uma imagem demasiado melancólica para a época (este Outono de empréstimo, tépido e apenas refrescado pela ondulação do sargaço à crista das ondas), mas ela funciona como uma gratificação de esplendor e de glória pessoal. Solitário, o Tio Alberto vivia rodeado de livros e de mapas, de almanaques e de instrumentos de cozinha. Foi ele que inaugurou a dinastia dos celibatários da família, que eu continuei com desvelo e egoísmo, desinteressando-me do futuro da espécie e crente na competência do resto dos Homem para se reproduzirem e se multiplicarem com vaidade. Assim tem sido. Eu estou entre as coisas velhas da família e as coisas velhas de Moledo. Sou uma grafonola dos anos trinta.
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